março 15, 2013




OS CRIMES DE SIL N. N. LIS

Para muitos aquilo seria um pecado capital. Entretanto, Silene Enelis havia mordido sem piedade aquela finíssima pele elaborada com farinha de trigo. Logo ela descobriria. Não havia nada de errado em mastigar uma hóstia. Entretanto. De fato ela se sentiu uma bastarda. Embora uma bastarda um tanto justificável. Tinha de ser ela a executar aquele ato pusilânime aos olhos de qualquer seguidor da religião católica. Ela que tivera um passado conturbado sendo seguidora de seitas ditas trogloditas e espiritualistas na velha Londres. Nesta outra ocasião  um motorista de táxi um tanto míope olha para ela enquanto lhe entrega uma pesada mala de viagem nas dependências do aeroporto Santos Dumont: “incrível, madame, a senhora está carregando algum defunto nessa mala?”. Silene Enelis se incomodou com aquele comentário absurdo. Ela permanecera longe do Rio de Janeiro por quase toda década de cinqüenta, agora estava viajando novamente, sobremaneira protegida por xales de lã e uma pesada manta de inverno. Ainda assim, mesmo que aquele motorista nanico a confundisse com alguma criminosa, Silene Enelis tomou como pode sua pesada mala e atravessou o saguão do aeroporto em direção à pequena e discreta livraria que se instalara ali por essa época. “Brochuras pecadoras, se cuidem, estou chegando!”. Quatro meses antes, ainda em Londres, Silene Enelis manteve os olhos fixos em suas mãos cruzadas na frente daquele amante ocasional. Ela olhava fixamente para os nós dos seus próprios dedos brancos enquanto ele tentava controlar sua raiva ao ser tratado como uma criança. O homem estivera fazendo um trabalho desumano numa fábrica de cimento desde que ele tinha quatorze anos, seu torso bronzeado e suas mãos maltratadas eram evidências desse fato. O que ele realmente precisava era de uma cerveja e um par de doses de tequila para ordenar a bagunça toda que também afetara sua cabeça operária. Entretanto Silene lhe oferecia mais do que isso. Ao abrir sua bolsa ela desfilou pelo quarto, enquanto ensaiava um titubeante tango argentino. Neste ato ela exibia um envelope pardo ao qual tecia loas por conter um barato que valeria por um milhão de tequilas e cervejas. Depois, por agir de maneira afoita, as pílulas de LSD haviam deslizado para a madeira não polida, cheia de poeira, do criado-mudo. Os dois estavam no quarto dos fundos de uma casa abandonada nos arredores de uma fábrica de cimento. Eles haviam se conhecido meia hora antes num pub da região. Logo se entenderam de passar a noite no quarto daquele homem que tinha a aparência desleixada e rude de um estivador. Ela riu ao adentrar aquele quarto imundo. Contudo, ambos sequer falaram sobre a poeira de cimento reinante por ali, aliás nem estavam atentos para aquela poeira. Contudo. Todas as frinchas daquele quarto abandonado lançavam fachos da nascente luz solar que atingem, inclusive, com reverberação incontida, seus corpos nus. James King, o operário do cimento, acordara mais cedo. Silene Enelis ao abrir os olhos sentiu um asco tremendo. Naquele quarto repleto de pó de cimento, ela se assustara com o corpo de um homem estendido no chão. Ela estava confusa pelo LSD ingerido na madrugada. Silene estivera viajando num mundo de celofanes multicoloridos. Onde. A cada dose a realidade se afogava em indizíveis formas, diante dos caleidoscópios vivos que se tornaram seus olhos. Tudo amealhava fantasias, diante de um céu composto por diamantes lindíssimos. Mas Silene despertou com James gemendo de dor. E ele, sobremaneira, a assustou com seus gemidos, por ter uma faca cravada nas costas. Diante desta visão ela desmaia. O promotor do condado utiliza-se de um lápis amarelo que ele estava usando como um bastão para conduzir a ladainha sobre certos crimes ocorridos na periferia de Londres. O promotor se virou para olhar para aquela moça de dezenove anos de idade que viera à sua mesa sendo acompanhada por dois guardas que a acompanharam desde o setor gradeado, passando por um corredor estreito, sendo dirigida até a sala de audiência. "Meritíssimo, esta moça de aparência inocente tem várias prisões em seu registro, incluindo dirigir sem licença, beber em locais proibidos para estrangeiros, destruição maliciosa de propriedade pública ao urinar premeditadamente na bandeira da Inglaterra, e também assalto... Assalto a mão armada... Senhor Juiz, eu estou sendo apressado na leitura desta ficha criminal... Para mencionar... Outras coisas de que esta moça poderia ser acusada... Como, por exemplo, a morte do operário James King...”. O dia amanhece naquela cidade satélite de Londres. Silene está com James King no quarto dos fundos de sua casa de campo. Há relinchos de cavalos vindos de uma cocheira anexa ao luxuoso quarto de James. Eles se conheceram num pub local e, duas horas depois, ali estavam em conluio de vicio, dividindo alguns comprimidos de LSD. Ela se apresenta totalmente nua e um dos comprimidos de LSD lhe escapa pelo vão dos dedos. Quando Silene o recolhe do chão, o comprimido se apresenta alongado e lembra muito a aparência de uma hóstia. Silene então mastiga a hóstia, e ela está com gosto de sexo e pecado. Silene adormece. Agora, na audiência pública, a mãe de James King, a quem o promotor brincou ao tratá-la por “rainha”, suspirou e, ainda sem se virar para olhar atentamente para Silene Enelis, a qual estava sentada num dos bancos fronteiriços que se destacava naquela pequena sala do tribunal. A mãe de King não olhou, mas sabia que ela estava balançando a cabeça negando o crime, tentando fugir como uma cadela, mas ainda com o gosto da isca de veneno em sua boca. Ao fundo da sala de audiência. Sentado tão longe da mãe de King o quanto possível, Mr. Alfonsus, o pai adotivo da vitima, inclinou-se contra a parede, algo sobremaneira rude, tanto que seu chapéu de vaqueiro lhe caiu sobre os olhos. Era como se ele estivesse dormindo, de braços cruzados, com as mangas da camisa preta desbotada, algo enroladas até os cotovelos, de modo que a turva tatuagem da silhueta de uma mulher nua parecia estar ao longo de seu antebraço como um lagarto esmaecido. Num repente o promotor vira-se para o advogado de Silene Enelis, um homem de pele encarquilhada e de aparência cansada, posto em sossego, aos modos de reles testemunha, nas arquibancadas do fórum. O promotor limpou a garganta ao se dirigir à ele: “o senhor teria algo para acrescentar?”. O velho advogado abriu os braços como se não estivesse entendendo a pergunta e responde um “talvez” de forma até cômica. Algo inusitado por certo, tanto que o juiz levantou a mão e, enquanto escrevia notas sobre o caso em questão, olhou demoradamente para Silene e depois para seu advogado. Em seguida o juiz voltou a rascunhar algo em suas notações para logo retornar à sua posição estática de rábula experimentado em audiências enfadonhas. Súbito um zumbido de mosca. Silene Enelis sente calor dentro da imunda edícula em que dormira na fábrica de cimento. Ela acorda, se espreguiça, e não vê James King ao seu lado. Imediatamente ela se levanta e olha através das frinchas daquele quarto repleto de poeira de cimento. Lá fora ela vê James King que troca diálogos ríspidos com um senhor estranho que está montado num cavalo negro deveras ensopado de suor. Silene reconhece este senhor como sendo Mr. Alfonsus, o pai adotivo de James. Ela continua observando os dois enquanto James se afasta e, para seu extremo horror, observa Mr. Alfonsus descer lentamente do cavalo e apunhalar James King pelas costas. Silene se põe a gritar sem parar, principalmente quando James adentra o quartinho de forma abrupta, já sem sentidos, e cai aos seus pés. Silene tenta arrancar o punhal cravado nas costas de James, muito embora, com isto, ela se incrimina ao deixar ali suas impressões digitais. Silene Enelis tem essa visão crítica enquanto está sendo confrontada com os fatos, agora sentada no banco das testemunhas. Subitamente, na audiência, ela deixa todos boquiabertos, pois alega ao juiz que possuía algumas evidências que iriam mudar o rumo das investigações. Todos estavam esperando pelas tais evidências quando justamente Silene aponta para o fundo da sala, em direção à Mr. Alfonsus: “ele é o criminoso!”. Mr. Alfonsus nem sequer se assusta, pois está com o rosto um tanto tombado para a direita, donde lhe cai uma baba pelo canto da boca, logo amparado por uma enfermeira que o assiste na condição de um entrevado, martirizado que está, há mais de dez anos, preso à uma cadeira de rodas. Todos riem no tribunal e Silene Enelis deixa de lado aquele livro barato que estava lendo no saguão de espera do Aeroporto Santos Dumont. O alto-falante anunciava o próximo vôo para Nova York. Ela teme perder aquele vôo, quando se levanta apressada e deixa aquele pequeno livro de aventuras jogado no banco. Com isto Silene Enelis, a qual durante a breve leitura se sentira no lugar da ré, jamais saberá quem realmente matou James King.


Beto Palaio

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