março 24, 2013



MARIA HELENA, ÉS TU?

Eis o texto nosso de cada dia. Ao transgredir tudo o que, aos nossos olhos, pareça apropriado. Entretanto sendo portador da fome de jovialidade que nos assalta. Neste ninho de estrelas da palavra, a alma pode encontrar-se insaciável. Algo para reduzi-la à mera astrônoma de vogais e consoantes. Tudo se condicionando a um deslumbrado mapeamento. Donde surgisse uma linha, pingo que fosse, de entendimento. Isto vem aumentar nosso desejo de busca pela palavra maior. Qualquer coisa. Que por todos é conhecido pelo vocábulo “felicidade”. Quando, pé ante pé, uma estória se aproxima. Logo montamos um circo para recepcioná-la. Eis, senões. Será que os cegos compram lâmpadas para seus apartamentos? Como adivinhar a necessidade de sentidos opostos aos nossos? A palavra aos poucos cede aos nossos pés. Abre-se uma cratera donde caímos sem possibilidade de resgate. O escritor desmiolou? Está com fome do concebido? Mesmo que haja desarrumação. Todo dia ele tem de bater na porta do texto. A essência da escrita é perversa de ardida, feito pimenta-malagueta, mas também é doce e gentil tal Iáiá e seus quindins. Na raspa do tacho. Haja, najas, jardins, prazos. O literato sempre consente em dar um jeitinho de abrigar um chamamento. O texto é como um saci-pererê. Ele vive escondido nas grotas. Gira em redemoinhos. Dorme no santuário das ostras. Em tantos becos. Parafusos que emperram o verso. Argila que sorve as idéias. Iceberg que só se mostra um bocadinho. Sorvete que só dura o tempo de derreter. “A palavra me encontrou, sou agora como um prisma derretido”, isto disse Ardiles olhando para a luz vermelha que indicava a plena funcionalidade do microfone da estação de rádio que transmitia a novela das dezessete horas. Maria Helena, sua namorada na novela, não entendeu nada, mas falou o que seu script previa: “sim, meu amor, esta é a chance de mamãe autorizar nosso casamento”. Ardiles parecia mais confuso ainda. Sua fala seguinte deveria ser: “Maria Helena, meu bem, chegou o momento que esperava, agora posso até pedir aumento na repartição. Nós vamos nos casar... Finalmente vamos nos casar, meu amor!”. No entanto Ardiles disse isso: “sou pelas vadias, não me casarei nem amarrado em fio de aço”. A novela estava mesmo para acabar. Seu capítulo final havia sido anunciado pelos patrocinadores. Neste sentido o público ficou boquiaberto. Ocorrera um final deveras trágico para os costumes sociais consagrados ao ano de mil novecentos e cinqüenta e quatro. No entanto. Maria Helena fica ao lado da porta da estação de rádio. Ela era uma mulher alta e elegante, com uma cor morena suave para a pele que os fãs da novela de rádio imaginavam ser negra. Ela nem esperou pela saída de Ardiles e dirigiu-se para a edícula que alugara de uma senhora cristã no bairro da burguesia local.  Agora, no arremate do mês de julho, o sótão estava quente. Anos atrás, quando ela ganhara a posse como professora-adjunta naquela cidade, o reitor ofereceu-lhe um apartamento do mais moderno, mais próximo ao campus. Mas ela recusou. Ela sempre apreciara um sótão, talvez pelo perfume das madeiras, somado ao seu mistério, seus nichos e recantos, onde alguém nunca poderia encontrá-la de chofre. Onde também ela poderia se refugiar quando quisesse. Além disto, ali ela tem uma luz maravilhosa. Raios de luz solar entravam pela imensa janela, conferindo enxames inquietos às partículas de poeira, como se o ar estivesse alegremente vivo. “Ardiles estragou tudo, pensou Maria Helena”. Ela mesma estava preocupada com o vazio que se avizinha dentro de seu ser. Solteira e sem familiares, ela é o que se poderia chamar de “uma pérola solitária”. Tudo o que ela deixara para trás, inclusive alguns colegas próximos, agora ela estava prestes a se aposentar, e seus alunos, aqueles imberbes com pretensões literárias, ela espera que cada um deles consiga editar seu livro, algo que viesse a ter sucesso no hall da fama da literatura nacional. Desde que saíra da novela. Isto ela imaginava que sim. Ela liga o radinho de pilha. Há um chamado no ar para que os artistas voltem para o estúdio. Agora a direção da novela está anunciando que houve um engano na leitura no final da novela. A transmissão não chegou a se completar, isto para a alegria do patrocinador, pois o contra-regra, aquele que consegue fazer um cavalo trotar batendo no fundo de uma casca de coco, e consegue fazer chover agitando uma folha de zinco, ele, o contra-regra, quando viu que Ardiles iniciou uma frase fora do contexto, correu para desligar o que estivesse a seu alcance, inclusive, revestido de juízo, no calor do momento, a chave principal do transmissor da estação de rádio. Agora Maria Helena está em sua edícula e ouve o chamado para que todos os artistas da novela voltem para a retomada do último programa. Inclusive Dona Gessy, a proprietária da casa aonde mora, vem lhe chamar batendo discretamente na porta: “Maria Helena... Ouça bem, minha filha... Você tem de voltar para a estação de rádio... Estão chamando os artistas de volta”. Uma buzina toca em frente ao portão da casa. A buzina toca novamente. Maria Helena não acredita que isto esteja acontecendo. Ela vem até a janela do sótão e avista o carro de Ardiles. Ele está impaciente e toca a buzina novamente. Maria Helena se veste com bastante pressa. Nem sequer faz a maquiagem, pois imagina que fará isto no carro de Ardiles enquanto rumam para a estação de rádio. Quando ela desce as escadarias do sótão, passa voando pela sala, dá um beijo rápido em Dona Gessy, abre a porta da casa, vê o carro de Ardiles, mas não vê ninguém no volante, Maria Helena se assusta. “Mas onde estará o Ardiles?”. Logo ela o avista dentro de uma cabine telefônica próxima. Sem demora ele volta para o carro. Ardiles está vermelho de raiva. Senta-se ao volante. Murmura algo incompreensível. Depois fala para Maria Helena: “viu só o que você fez?”. Ela está atônita: “como?... Eu não fiz nada de errado!”. Ardiles parece não ter pressa de voltar para a estação de rádio, onde todos os esperam para que retomem o último capítulo da novela: “todo mundo parece estar sempre saindo de férias... Não parece?”... Maria Helena não entende onde Ardiles quer chegar. Ele liga o motor do carro e logo zarpa à toda velocidade rumo à rodovia local. Maria Helena subitamente entende que está sendo raptada e que Ardiles está fugindo para não ter de completar o último capítulo da novela. “Será uma longa viagem até a Flórida”, ele diz com um sorriso enigmático. Maria Helena sente um tipo de enjôo causado pelo sentimento de revolta e medo. Assim transtornada. A moça coloca a mão no trinco da porta do carro em movimento e abre-a, pronta para saltar. Depois ela se arrepende, volta a se ajeitar no banco do carro, e fecha aquela porta silenciosamente.


Beto Palaio

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