março 17, 2013



A NOVIDADE 

Vejo dois palhaços. Quem cortou a linha de acesso ao telefone do andar de cima foi um deles. Amanhã um oficial de justiça virá até minha casa. Não temo por ter de alugar um outro espaço para morar. Tudo é arte. Mesmo escrever algo com o pensamento na lotérica da esquina. O fato é este. Essa é que é minha verdade. Preciso urgentemente ganhar na loteria. As contas se acumularam de tal forma que não houve jeito de pagar o que quer que fosse.  Também estou sem carro. Mas com saúde boa. Ainda tenho vizinhos que me socorrem. Não há possibilidade de erro. Bato na casa ao lado por meio quilo de arroz. Bato na porta da frente por uma xícara de feijão. Até que bati na casa de uma nova vizinha. Logo de cara ela me impressionou. Nunca a vira antes nos arredores. E foi ela mesma quem atendeu à porta. Entretanto, nem sequer ouvira o que lhe pedi. Novitas se adiantou e, depois de dizer seu nome, me fez o convite para que entrasse. Ela era bastante jovial, apesar de apresentar discretas rugas que denunciavam a proximidade dos quarenta anos. Com incrível determinação, Novitas me convidou a sentar. “Quais são as novidades?”, me perguntou ela sem rodeios. Olhei para aquela criatura simpática e pensei em não responder. Tenho evitado ler os jornais, portanto não sei de muita coisa nova. Entretanto, a novidade era mesmo eu estar ali dentro daquela casa com uma mulher misteriosa, linda, interessante, sexy com certeza. Mas. Sou o que sou. E a isto é que me resumo. Não nego minhas tramóias. “A novidade é que meu emprego se foi, minha ex-mulher concordou com o divórcio, meu senhorio me pediu o apartamento e meus amigos me evitam declaradamente”. Novitas pareceu não me escutar: “E quais são as novidades?”, insistentemente repetiu ela, mas notei que desta vez ela colocou a letra “e” antes da pergunta propriamente dita. “Bom, as novidades são as mesmas”, repeti eu, sem vontade de falar o que já dissera antes. “Sim... Mas quais são as novidades?”, Novitas tornou a insistir, sendo que desta vez concordou com algo que eu falara antes, pois disse a palavra “sim” como determinante dessa concordância. “Olha... Não consigo fingir... A grande novidade é essa mesma”. Ela concordou, piscando afirmativamente os olhos, dizendo que entendera por fim qual seria a novidade. Depois ela sentou-se ao meu lado, no sofá fronteiriço ao dela. Sem pressa nenhuma. Novitas então me mostrou uma embalagem de papelão, quadrada e achatada, decorada com barbantes dourados, a qual me abriu de pronto e, com incontido orgulho, me repetiu: “gostei da sua novidade... Mas veja agora a minha novidade”. Novitas parecia emocionada ao destampar a caixa de papelão. Dentro dela havia uma única fotografia. Nela Novitas estava totalmente nua segurando um gato negro, um animal de pelagem luzidia, um tanto estranho, bastante esquisito, aliás. Eu prestei atenção ao pelo do gato e à destacada penugem negra que cobria a vagina de Novitas. Elas eram idênticas. Eu poderia jurar que tanto o gato quanto a vagina eram cobertos com o mesmo tipo de pelo. “Viu a novidade?”, disse-me Novitas um tanto apressada em saber minha opinião. “Vi a coincidência da penugem... Pelinhos... Os pentelhos... Se é que me entende”. Novitas fez notar que eu não enxergara a novidade, mas mostrou-se determinada para que eu mesmo a encontrasse. Ela retirou a foto da caixa de papelão e me entregou para que eu a analisasse com mais vagar. Aqui faço um preâmbulo. Eu tenho de dizer que a liberdade de escolha por vezes é quase insuportável para mim. Eu muitas vezes me pego pensando mais sobre a estrada não tomada do que aquela que escolhi. Como resultado, eu fico muito confuso com minhas opções. Eu tenho a tendência de ficar paralisado pela escolha tomada seja ela qual for, então acabo entrando em paranóia, curto-circuito. Fico neutralizado diante disso. Claro está que este fato determinante na formação da minha personalidade não permitiu que eu visse na foto algo mais do que já vira. Mas tentei descobrir qual era o jogo de Novitas. Olhei para a foto como Sherlock Holmes olharia para uma pegada fresca na trilha de um crime. Analisei o todo daquela mulher nua e vi que ela era deveras interessante. Parecia que ao apreciar atentamente aquela foto, havia um entranho convite em seu olhar. Algo de cumplicidade, conluio de entregas lascivas, uivos de alguém carente por um arroubo conquistador. Olhei atento para a fotografia, isto é crucial, e não achei novidade nenhuma, por isso voltei a falar da coincidência do púbis se parecer com a pelagem do gato que Novitas segurava na foto. “Acho que é isto mesmo”, disse devolvendo a foto para Novitas. Ela balançou a cabeça negativamente e recolocou a foto na caixa me olhando com censura, como se eu de fato fosse obrigado a adivinhar algo apenas observando uma determinada imagem fotográfica. Depois Novitas se levantou e disse que ela teria de insistir neste tema, assim iria me fazer a pergunta de modo mais incisivo. Foi desse modo que Novitas saiu da sala e demorou cerca de cinco minutos para retornar. Quando voltou ela estava lindamente nua e trazia ao colo um belo gato negro. Eis sua atuação performática. Agora Novitas desfilava diante de mim, na esteira de uma possível mudança na minha dramática existência. Algo que entendo como plausível, o fato do sexo haver fugido pela porta dos fundos de um homem traumatizado pelas dívidas, do ser inadequado para um emprego fixo quando, no extremo do presumível, haveria uma probabilidade de mudança inesperada em sua insípida vida sexual. A verdade é que tremi diante daquela linda mulher nua. Não tanto pela possibilidade de satisfação das minhas reivindicações imediatas. Mas aquilo era mesmo um belo regalo fora de hora. Por certo me senti um privilegiado diante dos jogos do destino. Verdadeiro é o chamado de consciência que me arrebatou, digo, inclusive com bastante facilidade. Pois outro fato inerente em mim, eu chamaria de "relógio biológico". O relógio biológico é uma entidade que reconheço existir, creio realmente que ele exista. Afirmo categoricamente que esse mecanismo rege apenas o palpitar dos corações masculinos, porque as mulheres nunca querem se adequar para permitir que um marcador de tempo paralelo se instale nelas de forma tão veemente. Mas o relógio biológico com certeza existe para os homens. É uma questão enlouquecedora para as mulheres que vigore a brevidade de seus invisíveis relógios em relação à longevidade dos relógios masculinos. Essa comparação me deu a oportunidade de experimentar um novo tipo de afeição que não surgira apenas com base nas atrações carnais. Na melhor das hipóteses um tempo complementar se abriu para mim. Isso me fez ficar confiante. Esse algo mais me excitava para adentrar as carnes de Novitas. “Sim... Gostei demais da novidade... Posso experimentar a novidade?”, perguntei para Novitas que já deixava fugir o gato e fez um gesto afirmativo com a cabeça. Foi assim que a novidade adentrou festivamente em minha vida.


Beto Palaio

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