A INCENDIÁRIA
Quem é? Quem é? Quem é esse anjo infernal? Hoje eu sei
muito bem o que sou. E denuncio nossa depressão compartilhada. Desde a
proliferação das pragas e catástrofes. Ou mesmo. A ação criminosa que matou milhões
de búfalos na pradaria americana. Revejo a cena com o estomago embrulhado. Enquanto
o cigarro do caçador branco ardia. Centenas de milhares de heranças das
hemoglobinas bufalinas, sob a mira de rifles indigestos, ardiam igualmente. Há
um arpejo de harpas que denunciam contratempos. “E as tartarugas marinhas?”,
alguém lembra de incluir o tema nesse diálogo sem peias de limite catastrófico.
Tento explicar, tim-tim por tim-tim. Sob a luz da vela, fechamos um olho, mas continuamos
vendo a luz da vela; fechamos o outro olho, e assim, com os dois olhos fechados,
não identificamos mais a luz da vela. "Ei, estranha!" A voz não era
alta, mas clara e penetrante. Eu olhei inutilmente através dos arbustos, então
ouvi um assomo de cascos por sobre os pedregulhos da trilha. Desta vez fiquei
um pouco impaciente. Olhei para cima, e percebi pela primeira vez, além da borda,
uns cinquenta metros acima de mim, outra trilha paralela, e dali, olhando para
baixo, bem na minha direção, por entre as excessivas folhagens, vi uma mulher
diminuta montada em um cavalo negro. Pouco a pouco nos aproximamos e observei
que aquela mulherzinha era minha imagem refletida num espelho tridimensional. Observo
o céu. Metade dele era azul e a outra metade era rosa-choque. Uma combinação de
destruição e falácia nos observa atentamente. “É claro que sim!”. Estão dando o
primeiro passo em direção aos humanóides extraterrenos. Em comparação. “O que
buscam eles nesse pântano de inutilidades?”. Imaginem se uma descomunal falha
planetária aceitasse ir para a escola primária, apenas para aprender as primeiras
letras. Acendi um isqueiro de metal que cheirava à gasolina. Nada no mundo
conseguia apagar aquele isqueiro. A chama, no entanto, era completamente
inútil. Exceto para os fumantes e os portadores de coquetéis molotov. Todo
obvio ulula. Os cães latem, as palavras ardem. Pontiagudo é o punhal da
palavra. Há destino, circo, malabarista, trevas, açoites, orgulho, cigarro,
gracejos. Minha mão treme. As cartas estão marcadas, pois nossa língua vem de
um latim mais que arcaico. Mas ontem no zôo, nada parecia agradável. Um
peregrinar de engradado em engradado. Todos os compartimentos estavam vazios
após o prenúncio do apocalipse final. Sinto-me como se fosse acariciada pelos
lábios de um anjo. Estou bem ao lado de Deus. Ao aproveitar este momento
locomotivo. Joguei o fogo eterno daquele isqueiro para o meio da relva seca que
cobria inteiramente o chão de nossa imensa floresta.
- Será que morri e não sabia?
Quando eu era menina eu tinha medo de que, em vez de
mulher, eu pudesse ser um homem. Esse trauma ficou para trás. Hoje. Eu vivo sem
complicações. Quando algo não parece certo, eu grito até que as coisas
novamente façam sentido. Eu não gosto de fechar os olhos para descobrir que não
há música, luzes, ou pessoas que eu conheça lá fora que não se repitam aqui dentro
de mim. Eu também não gosto de ficar sozinha, detesto ficar na minha cama
sozinha, ou mesmo pela manhã, quando acabo de acordar e me sento, sem motivo
nenhum, no banco do meu carro, sem ninguém à vista, dentro da garagem. Ah, eu
também odeio o som do silêncio. Se eu adormeço deitada sobre meu braço direito,
logo passo a ouvir o que parece ser a batida do coração da minha mãe, às vezes
em meu sonho eu até comparo a minha respiração em cadência com a respiração de
minha mãe, quando acordo é para encontrar a mim mesma deitada de costas em uma
posição que mais lembra um feto, com isto eu me sinto enganada e traída. Eu
uivo desde minhas entranhas em um acesso de raiva, até que alguém venha e me
faça carinho, geralmente minha mãe, que está chocada e preocupada da forma como
sua filha caçula poderia ser tão diferente dos seus outros filhos. Mas logo
acordo e vejo que sonhei. Sinto-me de fato tão sozinha. Dias e noites que
seguem a este sonho materno não significam nada para mim. São dias vazios. Com
isto cheguei a pensar em falar com um colega na clinica. Talvez ele me
prescrevesse algo diferente do que eu mesma me prescrevo. Talvez.
- Espere um minuto que já te atendo... Sim eu sei que
estou atrasada no atendimento... Mas não dá para ter paciência?
Eu não sei o que diabos meus pacientes lá fora estão
falando, falando, falando. Esta minha gravidez me deixa um tanto exasperada.
Implico com tudo. Sobremaneira. Também não sei o motivo do meu bebê hoje estar
me chutando tanto. Ele está tão agitado. Às vezes imagino que dentro de meu
útero há uma cabeleira em que meu bebê se pendura. Isto é mais que bizarro.
Melhor chamar o próximo paciente.
- Pode entrar quem chegou primeiro!
Uma moça muito jovem entra para atendimento e deita-se no
divã, como sempre fizera nos últimos meses.
- A doutora viu o jornal de hoje?
- Não vi não... O que houve?
- Está ardendo em chamas toda a nossa reserva florestal...
Eles desconfiam de incêndio criminoso...
Parece-me que pela primeira vez estou a par dos
acontecimentos. Fico deveras emocionada pelo terrível incêndio. O alvoroço em
abundância me toca profundamente.
- Nossa! Mas quem faria uma desgraça dessas?
Beto Palaio
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