QUATRO CONTOS PARA EDITH
E EGON SCHIELE
Ventava muito naquela manhã. Minha coluna
vertebral estava enregelada. Parecia que ela se transformaria num arrimo de geadas.
Foi quando olhei de lado e parei para apreciar uma parede. Havia ali um mundo
entalhado a canivetes. Arranhados por sobre uma caiação antiga. Todo um
universo humano com seus vales, montanhas e lagos. O vento cortante me afligia.
Sentia-me um suicida que permanecia a disposição daquela foice mortal, mas não
arredava o pé daquele mirar. Ali o artista—sabe-se lá quem seja—desenhou, com
estocadas de corte diminuto, animais que corriam açoitados por cavaleiros
apressados, os seus perseguidores. Mas isto era apenas um detalhe no todo, pois
aquém se revelava sombras de árvores frutíferas com a presença, aqui e ali, de
alegres manchas solares. Eu, entretanto, caminhava por sobre a terra, e não
sentia mais as minhas pernas e braços, contudo me quedava prazerosamente leve.
Ausentando-me dali como se flutuasse sobre uma pluma.
(Mini-conto escrito a partir de um
pequeno poema de Egon Schiele)
Onde estive assim distante de minha adorada?
Vi ao longe caminhos atravessados. Todos esses caminhos se dirigiam para uma
distante montanha, agora afogada na neblina. Chovia um negrume de noite
cerrada. Houve mesmo esse rio de águas negras, um fragor de cachoeiras, tinta
negra que inclusive tentou sugar minhas forças. Tudo conspirava contra mim. Mas
nenhum manto de pó de carvão me alcançou. De fato vi que havia nesta planície,
em meio ao limbo, águas menores a correrem. Eram águas límpidas de riachos
ocasionais. Barrancos de lama flácida, porém esperançosas. Ali eu lutei,
desencontrado. Então fui recolhido pelos braços de um anjo, tanto quanto pelos
dentes fiéis de seu cão de estimação. Logo, já refeito, eu respirei do ouro de
viver. Acordei e, de fato, chovia no nosso quintal. Você me consolava com seu
corpo nu. Mordiscava-me ternamente, tal uma ninfa angelical que eventualmente
se revela em seus beijos repletos de luxuria. Não quis acordar. Não, não. Agora
não.
(Mini-conto escrito a partir de um
pequeno poema de Egon Schiele)
Seus cabelos castanhos, feiticeiros como o
melhor dos champanhes. Uma tradução do que são seus cabelos: o marrom quente da
terra de Úmbria. O vermelho ardente das folhas outonais que se entregam ao rapto
do vento sob um céu azul. Um carmim luxuriante como a inteira composição
ferroviária que liga Berlim ao oceano. Por fim, é claro, as cores lascivas de
seus contornos lúdicos, onde me aprofundo com meu membro pulsante em seu púbis
que, alucinante, imita a cor das gôndolas venezianas. Em você me deleito por
inteiro. Anseio pelo prazer grego de existir a dormitar em uma rede de cetins,
acalentado pelo melhor vinho já servido a um mortal. É como um homem faminto
que me arremesso para dentro de você. Ao sabor de nuvens que correm para se
esconderem no oeste, repletas de luz e cores. Você é com certeza uma
mulher-noite, então me lanço às suas eternidades de nuances. Sem esquivas. Sem
palavras. Apenas me dissolvo em meio à sua fragrância de carne feminina.
Abraço-te com loucura. Pois estou caindo. Totalmente entregue ao seu infinito
perfumado. Ditoso ao adentrar sua rosa cálida. Onde gozo em plenitude, para
depois desfalecer nesta delícia que é te amar.
(Mini-conto algo inspirado na pintura Amantes
Abraçados de Egon Schiele)
Eu sempre me lembrarei que era princípio de
noite. Havia pessoas esperando por algo vindo do céu. Aquilo durou uma eternidade,
mas terminou muito cedo: o tempo das pessoas entenderem que um cometa não é
nenhuma colher insana que vem agitar um céu feito de geléia. Eu segurava sua
mão. Você parecia estar sozinha a meu lado. Olhava para o céu azul escuro. Mas
nada acontecia ali. Parecia mesmo que via um fenômeno comparável à lua vindo se
derreter contra o sol. Mistérios que somente seus olhos decifravam. Viajando
por mundos de revelações nunca alcançadas por outro olhar qualquer, senão pelo seu
próprio olhar. Por um momento eu te vi chorar. Era fim de setembro e fazia
frio. A maravilha que seu olhar vislumbrou ao mirar aquela imensa tela de
cinzas azulados, isto eu jamais saberei. Mas a miríade de duas pequenas
lágrimas suas, isto sim é que mexeu comigo. A humanidade parou para observar o
cometa. Pura perda de tempo e de pesquisas adiadas ou perdidas. Quanto valeria
para os pobres mortais um momento só do que foi seu vislumbre? Para você o
cometa possivelmente apareceu mostrando como estavas no dia do casamento. Um
rosto iluminado pelas flamas da felicidade, deixando também que submergisses
numa cauda luminosa. Pois foi ali, no piso da igreja, que sua Via Láctea se
arrojou em brancuras, no dia de nossas núpcias.
(Mini-conto algo inspirado no desenho
Edith Apoiada no Joelho, de Egon Schiele)
Beto Palaio
Arte: Egon Schiele - O casal - 1913
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