junho 14, 2014



QUATRO CONTOS PARA EDITH E EGON SCHIELE 

Ventava muito naquela manhã. Minha coluna vertebral estava enregelada. Parecia que ela se transformaria num arrimo de geadas. Foi quando olhei de lado e parei para apreciar uma parede. Havia ali um mundo entalhado a canivetes. Arranhados por sobre uma caiação antiga. Todo um universo humano com seus vales, montanhas e lagos. O vento cortante me afligia. Sentia-me um suicida que permanecia a disposição daquela foice mortal, mas não arredava o pé daquele mirar. Ali o artista—sabe-se lá quem seja—desenhou, com estocadas de corte diminuto, animais que corriam açoitados por cavaleiros apressados, os seus perseguidores. Mas isto era apenas um detalhe no todo, pois aquém se revelava sombras de árvores frutíferas com a presença, aqui e ali, de alegres manchas solares. Eu, entretanto, caminhava por sobre a terra, e não sentia mais as minhas pernas e braços, contudo me quedava prazerosamente leve. Ausentando-me dali como se flutuasse sobre uma pluma.

(Mini-conto escrito a partir de um pequeno poema de Egon Schiele)



Onde estive assim distante de minha adorada? Vi ao longe caminhos atravessados. Todos esses caminhos se dirigiam para uma distante montanha, agora afogada na neblina. Chovia um negrume de noite cerrada. Houve mesmo esse rio de águas negras, um fragor de cachoeiras, tinta negra que inclusive tentou sugar minhas forças. Tudo conspirava contra mim. Mas nenhum manto de pó de carvão me alcançou. De fato vi que havia nesta planície, em meio ao limbo, águas menores a correrem. Eram águas límpidas de riachos ocasionais. Barrancos de lama flácida, porém esperançosas. Ali eu lutei, desencontrado. Então fui recolhido pelos braços de um anjo, tanto quanto pelos dentes fiéis de seu cão de estimação. Logo, já refeito, eu respirei do ouro de viver. Acordei e, de fato, chovia no nosso quintal. Você me consolava com seu corpo nu. Mordiscava-me ternamente, tal uma ninfa angelical que eventualmente se revela em seus beijos repletos de luxuria. Não quis acordar. Não, não. Agora não.

(Mini-conto escrito a partir de um pequeno poema de Egon Schiele)

                                                                                        

Seus cabelos castanhos, feiticeiros como o melhor dos champanhes. Uma tradução do que são seus cabelos: o marrom quente da terra de Úmbria. O vermelho ardente das folhas outonais que se entregam ao rapto do vento sob um céu azul. Um carmim luxuriante como a inteira composição ferroviária que liga Berlim ao oceano. Por fim, é claro, as cores lascivas de seus contornos lúdicos, onde me aprofundo com meu membro pulsante em seu púbis que, alucinante, imita a cor das gôndolas venezianas. Em você me deleito por inteiro. Anseio pelo prazer grego de existir a dormitar em uma rede de cetins, acalentado pelo melhor vinho já servido a um mortal. É como um homem faminto que me arremesso para dentro de você. Ao sabor de nuvens que correm para se esconderem no oeste, repletas de luz e cores. Você é com certeza uma mulher-noite, então me lanço às suas eternidades de nuances. Sem esquivas. Sem palavras. Apenas me dissolvo em meio à sua fragrância de carne feminina. Abraço-te com loucura. Pois estou caindo. Totalmente entregue ao seu infinito perfumado. Ditoso ao adentrar sua rosa cálida. Onde gozo em plenitude, para depois desfalecer nesta delícia que é te amar.   

(Mini-conto algo inspirado na pintura Amantes Abraçados de Egon Schiele)

                                
                                                                                       
Eu sempre me lembrarei que era princípio de noite. Havia pessoas esperando por algo vindo do céu. Aquilo durou uma eternidade, mas terminou muito cedo: o tempo das pessoas entenderem que um cometa não é nenhuma colher insana que vem agitar um céu feito de geléia. Eu segurava sua mão. Você parecia estar sozinha a meu lado. Olhava para o céu azul escuro. Mas nada acontecia ali. Parecia mesmo que via um fenômeno comparável à lua vindo se derreter contra o sol. Mistérios que somente seus olhos decifravam. Viajando por mundos de revelações nunca alcançadas por outro olhar qualquer, senão pelo seu próprio olhar. Por um momento eu te vi chorar. Era fim de setembro e fazia frio. A maravilha que seu olhar vislumbrou ao mirar aquela imensa tela de cinzas azulados, isto eu jamais saberei. Mas a miríade de duas pequenas lágrimas suas, isto sim é que mexeu comigo. A humanidade parou para observar o cometa. Pura perda de tempo e de pesquisas adiadas ou perdidas. Quanto valeria para os pobres mortais um momento só do que foi seu vislumbre? Para você o cometa possivelmente apareceu mostrando como estavas no dia do casamento. Um rosto iluminado pelas flamas da felicidade, deixando também que submergisses numa cauda luminosa. Pois foi ali, no piso da igreja, que sua Via Láctea se arrojou em brancuras, no dia de nossas núpcias.

(Mini-conto algo inspirado no desenho Edith Apoiada no Joelho, de Egon Schiele)



Beto Palaio


Arte: Egon Schiele - O casal - 1913

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