ALGUÉM CANTOU ALELUIAS
NO CORREDOR
Um grito atravessou o
céu. Parecia ser isto, mas não foi. Alguém batia na porta do quarto. Quem está
aí fora? Perguntou ele, com a respiração recortada. Ainda sonolento. Abrindo lentamente
seus braços preguiçosos, vinha despertar ao límpido do momento, em verdes
folhagens. Nesta vida em que se concorre. Barroquismo de coqueiros e palmeiras
imperiais. Uma aberração apenas invadida pelo ocasional desadormecer. Ao
magnetismo de acordar assustado. Uma vampira poderia estar batendo naquela
porta. Um grito foi o que ele ouviu. Dependuradas na porta, pelo lado de
dentro, as chaves balançavam. Uma radiação qualquer pedia para tomar forma ali
no corredor. No lado de fora uma motosserra entrou a ranger seus dentes
revolucionários. Sua cama não era mais um refúgio seguro. Lá fora a vida ardia
dentro de uma caixa de chocolates. Apenas que seu corredor tinha 18 anos de
idade, agitava bandeiras ativistas, enquanto ele mesmo tinha 62 anos de idade,
e mantinha promessas de não envolvimento. Alô, ó de casa. Alguém aí dentro? Ele
não responde nada. Fica de soslaio. Quer porque quer adivinhar quem bate.
Embora pleno de certezas. Aquilo em que todos nós titubeamos. Quando e onde. Todos
morremos. Mas nunca na véspera. O fato mais que consagrado. Todos dissipamo-nos
um pouco quando adormecemos. Nisso ele pensava. Enquanto desde o console. Um
programa de TV comunicava Chacrinha para um bando de adolescentes gritalhões.
Havia ali um impasse. O corredor o invadia ao ponto dele conhecê-lo por
inteiro, desde as imperfeições dos tacos de madeira, até a parede mal pintada.
No entanto sua mente quedava-se popularmente brega e incapaz de adivinhar quem
batia na porta de seu dormitório. O apresentador na TV parecia lacrimejar por
detrás de óculos grossos de miopia. Uma dançarina veio desde Belém do Pará e
forçou sua coluna para ganhar o premio da maior contorcionista do Brasil. O
velho apresentador pediu palmas. O mundo civilizado acompanhou aquele belo
corpo juvenil se curvar para trás e se tornar um disforme pedaço de borracha que
uniu sua cabeça aos tornozelos. Todos gritavam na TV. Entretanto. Alguém batia
na porta de seu quarto. Sua nominação como chefe de seção nos Correios acabara
de ser editada no Diário Oficial. Uma janela entreaberta demonstrava que a rua
estava vazia. Uma lata de marmelada, a guisa de cinzeiro, estava no parapeito
da janela, cheia de pontas de cigarros. Meus cigarros se acabaram. Vou acender
as bitucas maiores do meu cinzeiro. Uma a uma as pontas de cigarro se
entregavam. Alguém retirou o sapato na porta de entrada e andava usando somente
as meias do lado de fora. Quem estaria em seu corredor? Uma chance em um milhão
que ele adivinharia quem batia à sua porta. É você, filho? É você, filha? É
você, Maria da Graça? É você? É você? Ninguém respondia. Uma luz verde ardia no
corredor quando ele olhou pelo buraco da fechadura. As suas mãos tremiam. Todas
as pontas de cigarro haviam sido fumadas até o filtro. Uma maneira ridícula de
ser morto. Em seu cativeiro, revia toda sua história. Senhoras e senhores, eu
vivi tão pouco! Quis gritar por socorro. Abriu totalmente a janela. Viu-se prontamente
em apuros. Observou longamente o lado de fora. O chão estava longe. A luz do poste
chegava até sua janela. Mas em competição com a luz da lua, a fraca iluminação
pública ficava humilhada. Ele quis gritar por socorro. A rua estava realmente vazia.
Dali ele podia ver o semáforo que ficava a alguns quarteirões, rua abaixo. O
vermelho cedia sua vez para o amarelo que cedia sua vez para o verde que cedia
sua vez para o amarelo que cedia sua vez para o vermelho. Ninguém estava
dirigindo carros naquela madrugada. Apenas uma mariposa girava em torno da luz
amarelada do poste. Uma competição desigual para ver se ela ganhava a corrida
contra si mesma. Havia agora um soldado pedindo para ele abrir a porta. Em voz
autoritária se identificou como sargento. Disse que era da Policia Militar. Mas
o policial tinha a mesma voz de um vizinho que morrera afogado na Urca há
muitos anos atrás. O homem isolado no quarto chegou até a porta. Sargento, ô
sargento, como vai a Neuzinha? Lembra quando ela dançava no Cassino da Urca?
Valeu a pena ter se suicidado pela Neuzinha, Sargento? Um momento de silêncio.
A voz do sargento lá fora praguejou. Merda! Como é que você descobriu que era
eu. Agora abra a porta. Já sabe quem sou eu, confie em mim. Abra a porta. Mas a
porta continuou fechada. Não dava para acreditar num suicida que jamais
pertencera ao quadro da Policia Militar. Mas ele ainda fingia que desconhecia a
trama, fosse ela qual fosse. Sargento! Com o rosto encostado na porta ele
gritou, eu nunca fiz sexo com sua mulher Neuzinha. Não tenho nada a ver com
isso. Deixe-me em paz! Dali ele podia ouvir a mariposa se debater contra a
lâmpada de mercúrio da rua. Agora alguém mais batia na porta. Dizia ser uma
enfermeira, teimava em afirmar que estava tudo bem. Está tudo bem, sim, você pode
abrir a porta, só quero medir sua pressão, ver se está com febre. Ouvindo isto
ele voltou no tempo. Agora sim é que ele se assustou de verdade. A voz da
enfermeira o fez ficar arrepiado dos pés à cabeça. Pois era Neuzinha, ele
poderia jurar, sim, era a Neuzinha. Uma mulher promíscua com quem ele se
envolveu há quarenta e cinco anos atrás. Neuzinha? Ele perguntou para a
enfermeira que tentava abrir sua porta. Neuzinha, é você? Não houve resposta.
Uma hora inteira se passou. O corredor estava silencioso. Logo o sossego
acabou. Um menino jogava bola no corredor. Sua mãe gritava com ele. Guarde essa
bola, pelo amor de Deus! O emparedado reconheceu a voz de sua mãe, e sabia que
era ele mesmo quem estava chutando bola no corredor. Logo é aquele menino,
aliás, ele mesmo, quem bate à porta. Pode abrir, medroso, pode abrir, pois esta
é sua última chance. Ou você quer que a
própria morte venha com seu molho de chaves e abra essa porta? O prisioneiro do
quarto finalmente se rendeu. Girou a chave ao contrário, uma, duas vezes.
Depois abriu a porta. Lá fora havia somente o silêncio. O silêncio. O silêncio.
O silêncio...
Beto Palaio
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