junho 01, 2014



AS MÁSCARAS

O lugar nem era tão bonito. Um caminho cercado por bambuzais hoje secos e retorcidos. Uma casa na entrada da vila, que estava quase às ruínas, mas utilizada agora como sede da prefeitura, muito embora sem um prefeito eleito. Ao longe. Montanhas servis. Um azul honesto repleto de tons de verdes. Aqui e ali, sinais visíveis de prosperidade, o vetusto de tudo há muito disperso no tempo. Eis os homens. Alguns ocupados em desbastar os bambus nativos para render espaço à cenoura ou ao agrião. Outros requerendo documentos para posse definitiva de um apanhado de terra. Os humildes homens da província são oriundos da mesma farinha. Bebem e festejam o patrão perdido, porém se locupletam com o novo patrão se este lhes convém. O cão roendo o couro do injusto passou aqui por despercebido. Quem do crime faz conluio oferece assunto para o tabelião, ou para o clérigo, ou para o delegado de plantão. O azedume nunca compensa, mas quando o doce da fruta é refém do oferecido, até um recém-nascido se interessa em chupar mangas. Com isto chega-se às adjacências de um assunto um tanto mais sério e taludo. Houve mesmo na Sérvia um velho pastor que criava ovelhas. Sem alardes, reclamava este bom homem, dia e noite, que nada de novo acontecia em sua tarefa. Cria ele, e sempre o creu, que um dia de azar gera maus frutos. Tanto agourou o velho que realmente ocorreu de uma das suas ovelhas vir a se perder. Anos de experiência nos bosques lhe escoltou no agir. O homem confabulou ternamente com seu cão-guia e este partiu celeremente em busca da ovelha perdida. Uma semana depois o cão voltou, mas sem a ovelha e ainda por cima trazendo na boca alguns fiapos de flanela que as pessoas do lugar descobriram ser das roupinhas um bebê desaparecido. Quando o povo da cidadezinha deu pelo fato, intentaram de matar o cão, isso, justamente por julgá-lo criminoso. Mas por sorte ouviram as arengas do pastor, o qual dizia ter orientado aquele cão desde as tetas de sua mãe, ou desde filhote, como se trata com frequência no ocidente. Com esta defesa inconteste, os homens e mulheres daquela cidade deixaram-se guiar para uma busca minuciosa, conduzidos por aquele peculiar cão que trouxera os fiapos nos dentes, aos flancos de uma montanha não muito ingrime, mas dotada de inúmeras cavernas em sua base pedregosa. Para o corredor de acesso de uma das cavernas o astuto cão anunciou um abanar de rabo e latidos prolongados, algo tido como esperançoso para todos que ali estavam, principalmente para a mãe do bebê, que se mostrava agora aos prantos. Mas o povo daquela pequena localidade agrícola e pastoril, cercados por um medo ancestral, mormente de cavernas nunca exploradas, permitem estes que o cão ali adentre sozinho. Os minutos demoram a passar. Há queixas de todo tipo. Alguns chegam a se culparem da veracidade de estarem seguindo a um cão como se adulassem, sobremaneira, com subserviência, ao bispo da aldeia. Entretanto. Quando o cão retorna, ele o faz acompanhado de mais admoestações de latidos e abanar de rabos, fato que transmite aos camponeses a esperança de que o bebê realmente esteja dentro da caverna. Assim eles adentram àquele local insalubre, macambúzio e sombrio. As pessoas estão munidas de tochas e lanternas que ardem com vela de cera. Até que se surpreendem e sorriem. Já que. Sempre é doce a boa notícia. Pois. Quando chegam ao fundo da loca escura interpretam aquilo como a um milagre. O caso é que. Há ali, numa das reentrâncias de pedra, simulacro de uma manjedoura acolhedora e hospitaleira, uma loba que alimenta, com seu próprio leite, ao bebezinho perdido. Logo o cão também cerca o bebê, oferecendo-lhe carinhos na forma de lambidas ocasionais. Linda cena. Inesquecível de fato. E é tão inesperado esse final feliz. Isso quando. Tudo volta lentamente ao normal. Mas há ali uma desagradável constatação para o bom pastor que perdera a ovelha. Pois naquele monturo de pedras calcárias, o amável ancião nota que há pelos de ovelha espalhados ao chão. O todo dava azos de que sua ovelhinha possivelmente servira de alimento para aquela loba, bem como ao seu próprio cão, isto era fato já aceito e consagrado. Assim é que termina esta estória de um cão, uma ovelha perdida e uma loba que acabam por prestar assistência a um bebê perdido, dando-lhe condição para que ele, com esse desprendido gesto, sobreviva para o seu destino verdadeiro. Esta estória deveria ter como lábaro algo uma ostentação de máscaras fortuitas. Esse talvez o moral advindo do esforço hercúleo de juntar palavras nesse labor por vezes injustificado. Já que. O lobo é sempre lobo, a ovelha é sempre ovelha, mas o cão inapelavelmente se revela com uma máscara de procedência incerta, já que ora age como cão, ora como loba e ora como ovelha. O mundo produz mesmo seres dessa natureza hibrida e inconclusa. Quem poderá reter-nos do vício de contratar um final feliz para qualquer conto ou anedota? Somos orientados para rimar pixel ao pixel, lar com lar, fuso ao fuso, alegria com alegria, cão ao cão, cor à cor. E não é assim que as coisas são? Um pingo de constatação não há de entornar o caldo dessa peripécia dita verídica, já que muitos se encobrem por detrás de máscaras, em arremedo do que, juízo errado se faz do cão-guia, pois todos nós ocultamos esconderijos secretos. Assim dispostos. Num baluarte, retina, galardão, confraria, muralha, que seja. Uma fortificação de onde perguntamos quem somos, de onde viemos e para onde vamos. No pisar de novas calçadas. Ocorre isto quando extrapolamos e damos ouvidos a um Erasmo, por demais instigante na cidade de Roterdão, quando este dizia que em vão a mulher usa máscara, pois continua sendo mulher, ou seja, alucinada. Pois é este dom de alucinação, conclui Erasmo, que lhes permite agir e ser, em muitos aspectos, mais feliz que o homem. Mas qual é afinal o desfecho dessa estória? Concorda-se com um encerramento. Para isto. Olha-se em derredor para procurarmos por aquele que usa máscara neste exato momento. Dizemos para nós mesmos: “este usa, aquele também, aquela idem”. Entretanto. Para os que pensam ser inútil um final assim destrambelhado. Claramente grafamos um mote mais do que adventício: Arranquemos a máscara, ah que alivio!


Beto Palaio


Arte: Analogdreams

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