QUASE NOITE
Quase noite: hora em que os morcegos se
disfarçam de pássaros. Eu sinto muito. Estou aqui bestificado. Porque não
pensei nisto antes? Erros, dizem vocês, erros fazem parte do aprendizado
juvenil. E eu os cometi aos montes. Tanto que. Há coro e velas acesas nas
igrejas, mas não me convencem. Decoração natalina nas ruas, mas nunca dizem nada para mim. Num disco 78 rpm, os Meninos Cantores de Viena me parecem bregas
demais. O que fiz para ganhar reputação de incorrigível? Apenas caminhei pelo
mundo. Ora sendo de sobra, ora sendo de saldo. Apenas amei demais. Amei uma
mulher de cabelos rubros como folhas de outono. Sua voz me tentava sensualmente,
no quase escuro, como se fosse me pecar no crepúsculo. Por vezes ela se vestia
de azuis profundos. Por vezes de cinzas terreais. Falou-me ela muitas vezes
sobre as infinitas constelações, onde incluía a matemática grega que cedia
catetos à hipotenusa. Amei loucamente essa mulher. Seus lábios brilhavam como
brasas desfalecidas. Em seus lábios definitivamente me perdi. Quase noite:
cambiante é este minuto onde há tempo para decisões e revisões que o próximo
minuto revoga.
Quase noite: quando os grilos começam a ficar
carentes e chorões. Um recorte angelical no que se conta com tanto empenho e
fé. São gritos ao calvário. Que será isto? São ais de contornos infrutíferos. E
que dor seria esta? Imensa, gigantesca, incomensurável. Dor em que até a Virgem
padeceu. Foi quando os seus braços sentiram esse vazio. Pelo desaparecimento
de seu filho amado no calvário. Que se aclare o que está desperto. Luz costurada e
bordada por dentro e por fora. É porque estamos vivendo essa fé imensa. Aonde até
os anjos vêm cantar. Os recortes. De papelão. Prédios inteiros constritos dessa
forma. Eles se perdem no alinhavado do lusco-fusco. Caminhamos todos ao longo
deste chão batido. Todas as folhas caídas se assemelham a uma língua tingida
de cascas de laranjas marrom-avermelhadas. No ar fresco não há dor. Aqui Cristo
não morreu. Um pássaro gorjeia como lembrete à sua mãe. Todos os seus amigos voaram
para se esconder do Inverno. Mas esse pequeno pássaro tem aqui uma missão. Ele
faz o melhor que pode. Ainda mais agora que o sol está brilhando lindamente por
detrás das últimas árvores na linha do horizonte. Quase noite: talvez o mar tente até tirar um cochilo nesta noite.
Quase noite: meninos jogam futebol até não
enxergarem mais a bola. Uma certeza me espia de soslaio. Minha viagem começa
aqui. Meu futuro é o caminho do que foi dito e feito. Como a estrada que ficou
para trás. A rua da infância. O prédio demolido da primeira escola. A casa de
meus pais. O tempo é um mercado deveras apinhado de acontecimentos. O vinho
envelhece no porão, meu amor foi para a guerra, o mapa da juventude está
irremediavelmente perdido. Entretanto há um alento. Sigamos então, eu e tu,
destino meu. Quando a noite se acomoda lá fora no edredom do céu. Como uma
criança que adormece no banco detrás de um carro. Passamos momentos de doce
entretenimento. Vamos, o bebê-noite e eu, passear pelas ruas já quase desertas.
A promessa da noite já faz acender os luminosos dos motéis baratos. Correm nos
trilhos os trabalhadores educadamente treinados a voltarem para casa. Os
restaurantes oferecem peixes pescados na hora. Todo argumento agora parece ser
tedioso. Porque então não nos perguntamos: o que somos, de onde viemos, para
onde vamos? Cansaram-se desta premissa secular? Crianças são sempre crianças.
Os meninos jogam bola e falam de Michelangelo. As mulheres apressadas falam de
Michelangelo. O motorista do ônibus que espalha sua fumaça negra fala de
Michelangelo. Sentado aqui no telhado. Eu assisto o pôr do sol sobre a cidade.
Uma única bola vermelha de fogo se vale para tudo tingir de matizes infindos. A
coloração empresta aos carneiros de nuvens um tom de rosa brilhante. Esses
carneirinhos não são nada dóceis. Eles se juntam uns aos outros
socialisticamente e tornam-se arautos da próxima tempestade. Mas não agora que
fios indizíveis de tons gritam por Michelangelo. Agora é quase noite. E é quando
a primeira estrela surge para cintilar suas eternidades no âmbar.
Beto Palaio
Arte: PATTY BAKER
- O sol se escondendo em Utah - 2012
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