junho 24, 2014


O JULGAMENTO DE ANITA MALFATTI NUM DIA DE SÃO JOÃO.

Três dias depois, isto presumidamente, uma moça passou aperturas para atravessar por uma estreita passagem. O apertado desfiladeiro, tal amarradura de varas de taquaritingas, ficava para lá dos portões de Araçoiaba, tiquinho de nada perto de Jabaquara, donde a avanhandava de um cachoeirão se esgoelava. Ali a tarde estava assaz enfermiça e azucrinante e nublada. Grandes gotas de chuva começaram a salpicar os ombros nus daquela moça. Havia um barulho de estrondos à sua frente. Avançava ela, numa trilha de pedra, seguindo aquele acanhado caminho estreito. Logo sua imaginação lhe sugere a figura de um pavão que voa em sua dianteira, em meio à tempestade. A moça caminha com os olhos fitos na emblemática ave. Até que os dois, ela e o pavão, deixam aquele precário caminho de pedras e se defrontam com uma gigantesca cachoeira. Não havia mais ninguém ali senão os três: ela, o pavão e a cachoeira. Só então o trio é revelado: “Sou Avivaz, seu advogado”, disse o belo pavão diante daquele encontro para o julgamento inadiável, aquele que faz parte dos três dias de agonia do qual ninguém escapa. A moça a ser julgada é Anita Malfatti, colorista das artes do Brasil. Já o Juiz, esse que surgiu barulhento e espalhafatoso, seu nome é Corredeira, um deus muito aplicado em aquilatar, diga-se, com muita precisão, ao emprestar sua caneta de fluir tintas ao correto agir.

O julgamento começou assim, meio sem graça, mas situado num lugar muito lindo, ensejado num círculo que se abria numa clareira cercada de tudo que era beleza deste Brasil. Mesmo assim, tudo ali parecia ser paranóia ou mistificação. Mas não, nada acontece por acaso. “Once upon a time”, lavrou deus Corredeira no livro de atas nº1, “Once upon a time houve no Brasil um movimento de arte chamado Pau-Brasil”. Aquilo estava maçante, perrengue, brega, inaceitável. O julgamento se arrastava entre descrições pormenorizadas e longos espaços dedicados à fantasia. A ré Anita Malfatti estava aborrecida diante de tanto palavrório, com isto ela se sentia fraca e cansada. Nessa soneira, enquanto ela meneava a cabeça para o adormecer, estava mesmo quase cochilando, de repente sobreveio uma terrível batida de martelo. Era o Juiz Corredeira que liberava o momento da audiência para o advogado Avivaz, o pavão. Um minuto só ele pediu ao Juiz, e saiu da sala retornando com suas testemunhas. Ali se apresentaram poetas, pintores e escritores. Todos eles colegas de Anita, que se alternavam em afirmar dela ser o máximo, muito boa mesmo, muito amiga, muito talentosa, excelente pintora, aliás, sem nenhum exagero, uma pintora especial, reafirmavam eles. Só então Avivaz pediu a palavra. O pavão abriu sua cauda em leque. Disse que só falaria umas palavrinhas para que constasse nos autos do processo, já que suas testemunhas haviam dito tudo o que poderia ser dito de louvável sobre a artista Anita Malfatti. “Eu só digo ao senhor Juiz e ao distinto jurado, que toda arte é ingênua. Toda arte é fugaz. Toda arte é feita para o momento em que o artista vive e sonha. Toda arte...”. Chega! Chega! O Juiz Corredeira estava ficando possesso. Cansou-se de tanto ouvir enaltecimentos à arte. E suspendeu o julgamento por quatro horas e meia.

Quatro horas e meia depois o jurado novamente se reúne para a audiência do Juiz Corredeira em relação à inquirida Anita Malfatti. Desta vez Avivaz, o advogado pavão, estava mais que preparado. Fez cara de enfezado e focou na defesa com empenho deveras magnífico. Na sucumbência da brevidade, Avivaz fez constar nas atas da defesa o que se diga. “Que ali se conste isto!”. Anita, sim, Anita... Um dos seus pecados capitais—ele disse que seria um, mas que poderia abranger multitudes—este pecado foi o fato dela ter sido excepcionalmente amorosa com a vida. Este é o dilema do andamento desta defesa de Avivaz, o pavão, momento em quem ele precisa esclarecer, ponto a ponto, o mapa desse ato indistinto que é o amar intensamente. Logo aconteceu, como que em seu socorro, um fato marcante onde, desde lá de fora, a baunilha, o roseira e o cafezal em flor, aliados ao todo verdejante que prolifera no entorno do círculo daquele julgamento, por um desses acasos da penitência da artista que amou ao intenso, justo naquele momento, quando Anita se apresenta aos olhos do júri, surgiu tão maviosos perfumes, bem brasileirinhos, ao aromático do espalhar seus excessivos dedos de fragrâncias por ali. Avivaz se penitenciou de lágrimas nos olhos, e o deus Corredeira voltou atrás no seu julgar apressado e nem mais por um minuto pensou que amar seria pecado. Anita, entretanto, cansou-se daquela audiência. Quis falar claramente com o seu advogado pavão. “Sigo a voz do mundo, disse Anita, então me penitencio, ou o amor que eu dediquei foi malversado, caso a arte tenha me devotado injurias, ou que tivesse faltado, caso eu a estivesse desonrado”. O pavão olhou para o deus Corredeira, para quem discretamente sugeriu um “sim, perdoai”, ao menear sua cabeça coroada. E nada mais foi perguntado, nem para Avivaz nem para sua cliente Anita Malfatti, a qual estava agora liberada para doar sua arte em seu novo e definitivo reino.


Beto Palaio


Arte: pavão voando no meio da tempestade – Séc. XVI

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