O JULGAMENTO DE ANITA
MALFATTI NUM DIA DE SÃO JOÃO.
Três dias depois, isto presumidamente, uma
moça passou aperturas para atravessar por uma estreita passagem. O apertado
desfiladeiro, tal amarradura de varas de taquaritingas, ficava para lá dos portões
de Araçoiaba, tiquinho de nada perto de Jabaquara, donde a avanhandava de um
cachoeirão se esgoelava. Ali
a tarde estava assaz enfermiça e azucrinante e nublada. Grandes gotas de chuva
começaram a salpicar os ombros nus daquela moça. Havia um barulho de estrondos
à sua frente. Avançava ela, numa trilha de pedra, seguindo aquele acanhado
caminho estreito. Logo sua imaginação lhe sugere a figura de um pavão que voa
em sua dianteira, em meio à tempestade. A moça caminha com os olhos fitos na
emblemática ave. Até que os dois, ela e o pavão, deixam aquele precário caminho
de pedras e se defrontam com uma gigantesca cachoeira. Não havia mais ninguém
ali senão os três: ela, o pavão e a cachoeira. Só então o trio é revelado: “Sou
Avivaz, seu advogado”, disse o belo pavão diante daquele encontro para o
julgamento inadiável, aquele que faz parte dos três dias de agonia do qual ninguém
escapa. A moça a ser julgada é Anita Malfatti, colorista das artes do Brasil.
Já o Juiz, esse que surgiu barulhento e espalhafatoso, seu nome é Corredeira, um
deus muito aplicado em aquilatar, diga-se, com muita precisão, ao emprestar sua
caneta de fluir tintas ao correto agir.
O julgamento começou assim, meio sem graça,
mas situado num lugar muito lindo, ensejado num círculo que se abria numa clareira
cercada de tudo que era beleza deste Brasil. Mesmo assim, tudo ali parecia ser
paranóia ou mistificação. Mas não, nada acontece por acaso. “Once upon a time”,
lavrou deus Corredeira no livro de atas nº1, “Once upon a time houve no Brasil
um movimento de arte chamado Pau-Brasil”. Aquilo estava maçante, perrengue,
brega, inaceitável. O julgamento se arrastava entre descrições pormenorizadas e
longos espaços dedicados à fantasia. A ré Anita Malfatti estava aborrecida
diante de tanto palavrório, com isto ela se sentia fraca e cansada. Nessa
soneira, enquanto ela meneava a cabeça para o adormecer, estava mesmo quase
cochilando, de repente sobreveio uma terrível batida de martelo. Era o Juiz
Corredeira que liberava o momento da audiência para o advogado Avivaz, o pavão.
Um minuto só ele pediu ao Juiz, e saiu da sala retornando com suas testemunhas.
Ali se apresentaram poetas, pintores e escritores. Todos eles colegas de Anita,
que se alternavam em afirmar dela ser o máximo, muito boa mesmo, muito amiga,
muito talentosa, excelente pintora, aliás, sem nenhum exagero, uma pintora
especial, reafirmavam eles. Só então Avivaz pediu a palavra. O pavão abriu sua
cauda em leque. Disse que só falaria umas palavrinhas para que constasse nos
autos do processo, já que suas testemunhas haviam dito tudo o que poderia ser
dito de louvável sobre a artista Anita Malfatti. “Eu só digo ao senhor Juiz e
ao distinto jurado, que toda arte é ingênua. Toda arte é fugaz. Toda arte é
feita para o momento em que o artista vive e sonha. Toda arte...”. Chega!
Chega! O Juiz Corredeira estava ficando possesso. Cansou-se de tanto ouvir
enaltecimentos à arte. E suspendeu o julgamento por quatro horas e meia.
Quatro horas e meia
depois o jurado novamente se reúne para a audiência do Juiz Corredeira em
relação à inquirida Anita Malfatti. Desta vez Avivaz, o advogado pavão, estava
mais que preparado. Fez cara de enfezado e focou na defesa com empenho deveras
magnífico. Na sucumbência da brevidade, Avivaz fez constar nas atas da defesa o
que se diga. “Que ali se conste isto!”. Anita, sim, Anita... Um dos seus pecados
capitais—ele disse que seria um, mas que poderia abranger multitudes—este
pecado foi o fato dela ter sido excepcionalmente amorosa com a vida. Este é o
dilema do andamento desta defesa de Avivaz, o pavão, momento em quem ele precisa
esclarecer, ponto a ponto, o mapa desse ato indistinto que é o amar
intensamente. Logo aconteceu, como que em seu socorro, um fato marcante onde,
desde lá de fora, a baunilha, o roseira e o cafezal em flor, aliados ao todo verdejante
que prolifera no entorno do círculo daquele julgamento, por um desses acasos da
penitência da artista que amou ao intenso, justo naquele momento, quando Anita
se apresenta aos olhos do júri, surgiu tão maviosos perfumes, bem brasileirinhos,
ao aromático do espalhar seus excessivos dedos de fragrâncias por ali. Avivaz
se penitenciou de lágrimas nos olhos, e o deus Corredeira voltou atrás no seu
julgar apressado e nem mais por um minuto pensou que amar seria pecado. Anita,
entretanto, cansou-se daquela audiência. Quis falar claramente com o seu
advogado pavão. “Sigo a voz do mundo, disse Anita, então me penitencio, ou o
amor que eu dediquei foi malversado, caso a arte tenha me devotado injurias, ou
que tivesse faltado, caso eu a estivesse desonrado”. O pavão olhou para o deus
Corredeira, para quem discretamente sugeriu um “sim, perdoai”, ao menear sua
cabeça coroada. E nada mais foi perguntado, nem para Avivaz nem para sua
cliente Anita Malfatti, a qual estava agora liberada para doar sua arte em seu
novo e definitivo reino.
Beto Palaio
Arte: pavão voando no meio da tempestade – Séc.
XVI
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