junho 25, 2014



AS RAMAS DA VIDEIRA

Quem me dera. Ela quis que eu ficasse quieto. As ramas da videira não têm espinhos. Não descuide que corte a mão, pois os frutos de espinho são outros, a rosa nem é fruto, porém se defende com alguns. Espinhos. De flor em flor. Contou seus machucados. Como se arranjassem um meio de revolver e arar e adubar e espargir sementes de uva na terra e depois esperar pela chuva. A rama de juá tem muito espinho. Assim como o abacaxi e o ariticum são espinhosos. Alguns são mais doloridos que os outros. Em imitação é a vida que começa em um tudo e, nem bem começa, já toma o caminho de volta. Ouviu-se isto no sertão nacional. Manuel Figueiras contratou um peão por nome Josualdo para que tomasse conta de suas doze vaquinhas, mas com a restrita ordem para que Josualdo ficasse longe de sua filha Morena, que era sestrosa e andava na flor da idade. Depois Manuel Figueiras tomou um trem para Belo Horizonte e de lá foi de ônibus para São Paulo. Consta que a vida sempre dá alguns carrapichos envenenados para um cabrão roer. A cidadezinha de Manoel Figueiras fica encravada no meio de Minas Gerais. Vem de lá o tocador de fole Aderaldo Castelo, o qual calhou justo de morar na mesma localidade do Manuel Figueiras. Aqui temos de interromper esse trem lotado de festas e risos. E, pois não é? Ouvidos e bocas são o que mais existem nas cidadezinhas mineiras, e noutras tantas por aí. Num solilóquio de saci assoviar no escuro. Eis que o tempo fia. Duas brisas de abrigar ventanias e duas de esconder temporais. Quatro invernos somente. Portas adentram recintos de lustro e serventia. Manuel estava no salão de barbeiros do bairro de Pirituba, em São Paulo. Ali desconfiava ele, olha aqui e acolá, desalijando suas intempestivas barbas para fora de seu queixo de estimação. Gelar em frio é por vezes prato que se serve quente. Foi assim. Quando de espaldar alto ele ouviu um isto de achincalhe dito pelo sanfoneiro Aderaldo Castelo, que por ter também a profissão de barbeiro, desde há um ano, mais-ou-menasmente isso, trocou sua sanfona pelo pente, navalha, espelho, aquavelva e talco. E a conversa viaja longe numa cadeira de barbeiro. Foi Aderaldo quem tocou no assunto que dizia respeito ao sítio de Manuel Figueiras: “soube que suas vacas andam magras e sua filha barriguda”. Fora o ar que se tem de sorver, o tempo que há para entender, o pigarro que há de limpar a garganta de responder. “É mentira, vagabundo!”. Aderaldo, o agora barbeiro, ouvira isto de que a filha de Manuel andava barriguda, e também das vacas magras, através de uma parente dele chamada Odete, que ouviu da Bebel, que ouviu da Linderléa, que ouviu da Adelicia, que ouviu da Marilene, que ouviu da Valdelú, que ouviu da Joana do Arthur, que ouviu da Das Dô, que ouviu da Lucianinha, que ouviu da Carminha, que ouviu da Berenice, que ouviu da Sãozinha, que ouviu da Maria Olinda, que ouviu da Paulina, que ouviu da Judite, que ouviu de Dona Ana, que ouviu da Soráia do Bastião, que ouviu de Catarina, que ouviu de Dona Amália, que ouviu de Josália, que ouviu de Sandrinha, que ouviu de Severina. Lá na ponta do repassado da converseira. Quando Severina, a primeirona, soube por um vizinho da casa de uma prima de Morena, a justa filha de Manuel, o que essa prima afirmara foi que Morena estava era mal das tripas, pois comera da fruta verde do jambolão e que o ajudante de serviços, por nome Josualdo, estivera morre não morre por ocasião de ter tomado um coice de raspão de um cavalo que teve de ajudar a castrar numa cidade vizinha. A estória, que era essa, correu mundos e fundos e porteiras e quintais e caras e bocas. Desdisse quem havia dito antes, reafirmou quem duvidava da enquete. Nessa carrapateira de contar. Um enfeixado de ramas de videira que se entrelaçam. Dali para cá, de cá para lá. A estória sempre muda de feição. Foi nesse esparrame que o meio-assunto caiu no ouvido do agora barbeiro Aderaldo Castelo e ele, dada as circunstâncias, foi chamado de vagabundo pelo sitiante Manoel Figueiras. “Tem coisa que um homem trabalhador não gosta, sr. Manoel Figueiras, e uma dessas coisas é ser chamado assim de vagabundo”. E disse mais: “Sou barbeiro, uma profissão que pode acontecer a qualquer um que não tem terra seca, nem vaca magra, nem filha barriguda para criar encrenca com quem é trabalhador”. O Manoel Figueiras espumava de ódio e fez menção de que iria tirar um revolver no aprumado, justo e rente, do seu por detrás, ao rejunte de ódio e chistes, do cós de sua cintura. Aderaldo Castelo foi mais rápido com sua navalha. Logo correu sangue dentro da barbearia. Juntou gente. Deu policia de promover acentuação de instituído poder, com lanternas acesas e sirenes ligadas. Juntou jornalistas e autoridades bem em frente ao pequeno comércio nas adjacências da barbearia. Deste modo Aderaldo foi preso e Manoel foi para o necrotério. “Acontece que sou um bom barbeiro!”, ainda disse Aderaldo Castelo diante do delegado que lavrou o caso e recolheu o barbeiro para o xadrez. Uma semana depois. Na sombra de um canto de cadeia. Aderaldo Castelo se penitencia: “tenho até medo de mim, não sou de confiança, sou mesmo muito perigoso... Mas tenho uma baita saudade de minha sanfona... Será que é contra a lei tocar sanfona por aqui?”. 


Beto Palaio


Arte: Inimigos entre as ramas da videira e os elefantes - desenho Rajput do século XVIII.

Nenhum comentário: