AS RAMAS DA VIDEIRA
Quem me dera. Ela quis que eu ficasse quieto. As
ramas da videira não têm espinhos. Não descuide que corte a mão, pois os frutos
de espinho são outros, a rosa nem é fruto, porém se defende com alguns.
Espinhos. De flor em flor. Contou seus machucados. Como se arranjassem um meio
de revolver e arar e adubar e espargir sementes de uva na terra e depois
esperar pela chuva. A rama de juá tem muito espinho. Assim como o abacaxi e o
ariticum são espinhosos. Alguns são mais doloridos que os outros. Em imitação é
a vida que começa em um tudo e, nem bem começa, já toma o caminho de volta. Ouviu-se isto
no sertão nacional. Manuel Figueiras contratou um peão por nome Josualdo para
que tomasse conta de suas doze vaquinhas, mas com a restrita ordem para que
Josualdo ficasse longe de sua filha Morena, que era sestrosa e andava na flor
da idade. Depois Manuel Figueiras tomou um trem para Belo Horizonte e de lá foi
de ônibus para São Paulo. Consta que a vida sempre dá alguns carrapichos
envenenados para um cabrão roer. A cidadezinha de Manoel Figueiras fica
encravada no meio de Minas Gerais. Vem de lá o tocador de fole Aderaldo
Castelo, o qual calhou justo de morar na mesma localidade do Manuel Figueiras. Aqui
temos de interromper esse trem lotado de festas e risos. E, pois não é? Ouvidos
e bocas são o que mais existem nas cidadezinhas mineiras, e noutras tantas por
aí. Num solilóquio de saci assoviar no escuro. Eis que o tempo fia. Duas brisas
de abrigar ventanias e duas de esconder temporais. Quatro invernos somente. Portas
adentram recintos de lustro e serventia. Manuel estava no salão de barbeiros do
bairro de Pirituba, em São Paulo. Ali desconfiava ele, olha aqui e acolá, desalijando
suas intempestivas barbas para fora de seu queixo de estimação. Gelar em frio é
por vezes prato que se serve quente. Foi assim. Quando de espaldar alto ele
ouviu um isto de achincalhe dito pelo sanfoneiro Aderaldo Castelo, que por ter
também a profissão de barbeiro, desde há um ano, mais-ou-menasmente isso,
trocou sua sanfona pelo pente, navalha, espelho, aquavelva e talco. E a
conversa viaja longe numa cadeira de barbeiro. Foi Aderaldo quem tocou no
assunto que dizia respeito ao sítio de Manuel Figueiras: “soube que suas vacas
andam magras e sua filha barriguda”. Fora o ar que se tem de sorver, o tempo que
há para entender, o pigarro que há de limpar a garganta de responder. “É
mentira, vagabundo!”. Aderaldo, o agora barbeiro, ouvira isto de que a filha de
Manuel andava barriguda, e também das vacas magras, através de uma parente dele
chamada Odete, que ouviu da Bebel, que ouviu da Linderléa,
que ouviu da Adelicia, que ouviu da Marilene, que ouviu da Valdelú, que ouviu
da Joana do Arthur, que ouviu da Das Dô, que ouviu da Lucianinha, que ouviu da
Carminha, que ouviu da Berenice, que ouviu da Sãozinha, que ouviu da Maria
Olinda, que ouviu da Paulina, que ouviu da Judite, que ouviu de Dona Ana, que
ouviu da Soráia do Bastião, que ouviu de Catarina, que ouviu de Dona Amália,
que ouviu de Josália, que ouviu de Sandrinha, que ouviu de Severina. Lá na
ponta do repassado da converseira. Quando Severina, a primeirona, soube por um
vizinho da casa de uma prima de Morena, a justa filha de Manuel, o que essa
prima afirmara foi que Morena estava era mal das tripas, pois comera da fruta verde
do jambolão e que o ajudante de serviços, por nome Josualdo, estivera morre não
morre por ocasião de ter tomado um coice de raspão de um cavalo que teve de
ajudar a castrar numa cidade vizinha. A estória, que era essa, correu mundos e
fundos e porteiras e quintais e caras e bocas. Desdisse quem havia dito antes,
reafirmou quem duvidava da enquete. Nessa carrapateira de contar. Um enfeixado
de ramas de videira que se entrelaçam. Dali para cá, de cá para lá. A estória
sempre muda de feição. Foi nesse esparrame que o meio-assunto caiu no ouvido do
agora barbeiro Aderaldo Castelo e ele, dada as circunstâncias, foi chamado de
vagabundo pelo sitiante Manoel Figueiras. “Tem coisa que um homem trabalhador
não gosta, sr. Manoel Figueiras, e uma dessas coisas é ser chamado assim de
vagabundo”. E disse mais: “Sou barbeiro, uma profissão que pode acontecer a
qualquer um que não tem terra seca, nem vaca magra, nem filha barriguda para
criar encrenca com quem é trabalhador”. O Manoel Figueiras espumava de ódio e
fez menção de que iria tirar um revolver no aprumado, justo e rente, do seu por
detrás, ao rejunte de ódio e chistes, do cós de sua cintura. Aderaldo Castelo
foi mais rápido com sua navalha. Logo correu sangue dentro da barbearia. Juntou
gente. Deu policia de promover acentuação de instituído poder, com lanternas
acesas e sirenes ligadas. Juntou jornalistas e autoridades bem em frente ao
pequeno comércio nas adjacências da barbearia. Deste modo Aderaldo foi preso e
Manoel foi para o necrotério. “Acontece que sou um bom barbeiro!”, ainda disse
Aderaldo Castelo diante do delegado que lavrou o caso e recolheu o barbeiro
para o xadrez. Uma semana depois. Na sombra de um canto de cadeia. Aderaldo
Castelo se penitencia: “tenho até medo de mim, não sou de confiança, sou mesmo
muito perigoso... Mas tenho uma baita saudade de minha sanfona... Será que é
contra a lei tocar sanfona por aqui?”.
Beto Palaio
Arte: Inimigos entre as ramas da videira e os elefantes - desenho Rajput do século XVIII.
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