SILHUETAS E PIRUETAS
Deixe de sonhar. Viver num mundo de faz de
conta. O escritor é um grande fingidor. Mentiras que se conta na forma de
estórias de urgência premeditada. Rindo e jogando as cartas do acaso como um
bufão. Há, entretanto, no rol de contar, este caso que é especialmente
verídico. Houve mesmo esse leão solto nas ruas. Um que fugiu do circo de nossa
infância. Vimos esse leão em 1975. Depois em 1966. Depois em 1957. O tempo em
que se via o leão ia se afastando de nós. Uma estrela de quinta grandeza
apareceu na janela daquele sobrado em 1966. Ninguém me avisou que o leão era um
engodo. Segui o animal até as fuças. Frente a frente com ele. Mais e mais
acreditei em sua existência. Desde que aquela janela se abriu. Um rosto que
tudo principia. Surge ali. Depois o corpo inteiro da donzela. Um balcão inteiro
somente para a namoradeira se espreguiçar.
- Você soube do leão que está solto nas ruas?
Ela me perguntou. Mas não tinha medo de fera
nenhuma. A beleza daquela moça sim, é que era selvagem e cativante. Sua
silhueta contra a luz da lua nova. “Eu te quero!”. Gritei para ela. Mas o grito
ficou aqui dentro. Por precaução ou timidez, nada disse. No dia seguinte voltei
ao mesmo local. Subi ladeiras. Atravessei praças. Cheguei a um descampado onde
uns guris jogavam bola. Perguntei para o carteiro. Depois para o pipoqueiro.
Por fim para um vendedor avulso de jornais e lembranças da Copa do Mundo.
Ninguém sabia me dizer sobre a casa assobradada que ficava diante da paineira
da praça central da cidade. Um desses vendedores anônimos até brincou comigo:
- Você procura uma casa assobradada ou uma
casa assombrada?
De vez em quando damos passagem para uma
estória leve, porém grafada de sentimentos e aporrinhações. Esta é uma delas.
Ocorre que tenho um primo que é historiador e é bastante zeloso em sua função.
Num desses sábados fui visitar esse primo munido de detalhes da pessoa que vi
no balcão da janela daquela casa assobradada. Ele foi buscar o livro de
registros históricos da cidade. Parou aqui. Estipulou ali. Reafirmou
possibilidades extravagantes com negativas de sua cabeça, a qual ia lentamente
para lá e para cá. Depois sossegou. Acendeu um cigarro, mas o deixou para
apagar sozinho no cinzeiro. Preocupado ele me falou lentamente:
- Eu acho que você falou diretamente com
Jurema, a filha da Marquesa de Santos...
Ouço ainda o ribombo daquela janela se abrindo
e a bela moça saindo no balcão. Entretanto é meu primo, o historiador, quem me
instiga:
- Você disse de um leão solto na rua?... Pois
isso aconteceu realmente no tempo da Marquesa de Santos... Tiveram, por fim, de
matar o leão que escapara de seu tratador...
Acontece com todo mundo. Se não entendo o que
escrevo não é culpa minha. Estive entre a vida e a morte na possibilidade de
ser atacado por um leão. Andei mesmo pela madrugada insone desta pequena
cidade. Pisei em paragens desconhecidas. Cheguei realmente diante daquela
paineira. Podia até ouvir o rugido do leão ao longe. Mas devo confessar que não
sei, em verdade, o que me aconteceu naquela noite. Será que fui salvo por essa
improvável aparição? Nunca mais voltei àquela praça. Vez por outra eu penso que
errei. Deveria ter dito para Jurema, a filha da Marquesa, que me salvasse.
“Sim, beleza, o leão foi visto por aqui! Salve-me. Jogue-me suas tranças. Faça
alguma coisa!”. Mas nada disse. Hoje eu confesso minha culpa. Não aproveitei a
oportunidade desse leão esfaimado que andou solto por ai.
Beto Palaio
Arte: Pablo Picasso- Leão e domadora - 1968
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