junho 16, 2014


Foto: ATAA OKO - Tentações em torno do esquife - Lápis de cor - 2010

TENTAÇÕES EM TORNO DO ESQUIFE

Há instintos abafados que mesmo assim sobrevivem. No passado o cavalo era a extensão de uma pessoa. Pelo simples fato de que, ninguém, em hipótese alguma, entenderia isso de outra forma. Há motivos para a excitação. Ódio, mesmice, sala vazia, todos os vasos de plantas, em abandono, estão secas. Cheguei de viagem hoje, mas não te encontrei em casa. Eletrizo-me de virar bicho. Ando daqui para ali sem entender. Nunca pedi para ela morar comigo. Dois destinos patéticos que se confirmaram único. Ao longo de meu peregrinar. Essa moça tinha manias na hora do cio. Mas amanheceu. Com isto eu penso que não tenho o mesmo destino vegetal de secar lentamente dentro dessa sala vazia. Era-me. Agora. Fui-te. Nunca tive ninguém fixo até encontrar você. A sensualidade por vezes é-me inoportuna. Podemos tentar fazer o que quiser com ela. Mas somente a sensualidade sabe o que fazer contigo. Há diversos métodos de autofagia. Um puxão que senti quando o pára-quedas abriu. Mas o assunto, por enquanto, nem era este, não ainda. Estava cansado de esperar que o problema se resolvesse sozinho. Chamamos pelo encanador. O sifão da pia estava entupido. Me culpei me confiei me resolvi me alforriei me esquivei me absolvi. Por precariedade adiei o fato desse primeiro compromisso do lixo caseiro haver locupletado irremediavelmente o cano da pia. Este assunto quase põe tudo a perder. Foi por pouco. Deixa eu te colocar a par. O pára-quedas me arrastou de volta para o alto. Estava falando do momento em que saltei para o meio do inferno. Durante a guerra nada fazia sentido. Lutei contra vietcongs que se pareciam fisicamente comigo. Espelho a espelho. Seus últimos suspiros. Suas súplicas ao chamarem pela mãe. Tudo pelo motivo de que. Por falta da posse de suásticas, confirmação do emblema inimigo, nunca se chegou a admitir que talvez mentíssemos. Botões de osso. Pobres botões. Nunca me livrei desses meus espelhos humanos. Quatro pessoas e dois homens que eu eliminei nesta guerra. Os homens se identificaram. Tomaram cerveja com o pelotão em Saigon. Uma vez colocaram uma moeda no fliperama. O som de sininhos repenicado constantemente. Cometi o mesmo erro. Depois de certo tempo cada um é responsável pelo seu próprio sovaco esquerdo e adjacências. Falo do coração. Nada faz sentido se não detalhamos o que temos para oferta imediata aos gritos de não fui eu, não fiz nada, sou apenas um soldado, sou igual a você, veja—então a primeira pessoa a ser morta abriu o uniforme para mostrar onde ficava seu coração—todos naquele pequeno comando terrestre confundimos tudo. O poeta vietnamita apenas quis mostrar o coração em que guardava todo seu sentimento. Até o final do dia matamos três poetas. Mas um deles não foi considerado como pessoa. Esse arrenegado. Até o remate do mal. Comprou uma briga no bar onde ouvíamos Let It Be. Deixa estar. Quando tudo estiver perdido. Deixa estar. Quando todos fecharem a boca. Deixa estar. Quando dedicarem para você o noticiário das sete. Deixa estar. Sim, sim, sim. No passe livre de sábado à noite para quem era dono da munição. Dia de folga. Fomos passar a noite no bordel. Segue-se que o bicho é mais criatura que o homem. Fique de boca fechada. Quando todos querem que você fique de boca fechada, então fique de boca fechada. Ouvimos a discoteca inteira sem emitir uma só palavra. Uma das putinhas mordeu o mastruço de um dos recrutas. Dedicamos aos que seguem as regras o que se seguiu. Um grito alcançou a manhã de 11 de setembro de 1970. Trinta anos antes da revolta dos renegados árabes, os que detonaram as torres. Deixe-me esclarecer alguns fatos. Uma figa, uma osga que estava tudo indo bem. Solitários são os gritos de quem morre numa revanche amigável. Mas isto aqui são somente letras para um livro que jamais será editado. Lendas. Guinchos de ferro com ferro. Que bela assassina tu és, vida! Caos de novo. Uma pequena catástrofe é a morte de cada um. Um fundo de mar revolto, o convite é irrecusável. No mole do inatingível. Eis os pés que se debatem, depois, água até o pescoço, a seguir não alcançamos mais a areia, então flutuamos numa correnteza mais forte, sem chance de retorno, o puxão é forte, como quando estamos num pára-quedas, mas agora o puxão te joga para águas profundas. Nesta ocasião. Você consegue. Você consegue dizer que está tudo bem. Você consegue dizer que está tudo bem quando tudo. Você consegue dizer que está tudo bem quando tudo está desmoronando. Você consegue dizer que está tudo bem quando tudo está desmoronando só para acalmar as pessoas?


Beto Palaio


Imagem: Desenho de Ataa Oko

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