junho 17, 2014

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TODA IDEIA QUE UM HOMEM POSSA TER
  
Eu tomei essa rasteira. É assim que as coisas são. Contudo. Na concórdia e na discórdia. Regras sociais existem, e nem sempre nos contemplam. Temos de rezar pelos que nos humilham. Mas perdoar em excesso também não é lição apropriada. Um imenso céu azul pesa tanto quanto uma montanha inteira esculpida, digamos, com rostos de ditosos presidentes. E isto é o que me desgosta a alma. Toda concepção que um homem possa acalentar, seja para o bem ou para o mal, acomoda-se na mesma sobrenatural balança. Houve que me tornei um peixe na linha de decisões sacramentadas. Lutei uma barbaridade nessa fisgada. É claro que não desisti assim, de uma hora para a outra, da minha invejável posição social. Tudo aconteceu em suaves pedaladas morro abaixo. As ações despencaram. O penhor tomou a casa. O carro foi absorvido no divórcio. Os filhos ficaram com minha ex-esposa. “Fiz uma besteira, mano”, falei para meus recentes colegas de infortúnio. Entretanto, não recebi nenhuma palavra de conforto. Lembro-me que fiquei sentado meio tonto, debaixo de uma ponte, com bêbados e sem-tetos. Nada me preparara para o fracasso. Eu achava que era predestinado. Como se na pedra por esculpir já estivesse escondida, em definitivo, uma estátua. Tentei ser otimista. Mas a cabeça também estala em pensar o contrário.

- Siga seus objetivos... É correto que deva haver algum plano...

Isto dito pelo Samuel. Um velho mendigo que também já teve seus dias de prosperidade quando, assim como eu, desceu as glamorosas escadas sociais até o realístico raso da rua. Mas porque ele mesmo não seguiu seu plano secreto?

- Samuel, se fosse assim, qual seria seu próprio plano? Porque ainda está morando na rua?

- Infelizmente eu nunca tive objetivos claros. Sigo conforme a determinação do destino em dar essa chance... Mas, quem sabe?

Ouvi as premissas de Samuel com certo pesar. E se eu fosse como ele, destituído de planos que sejam favorecidos pela sorte? Todavia, passei a imaginar qual projeto eu teria para colocar em prática. Todo dia tenho essa crença inadiável. Deve haver algum projeto, um único que seja, que me proporcionará uma vida melhor...


(Mini-conto algo inspirado em Toda Idéia Que um Homem Possa ter, poema escrito por Michelangelo Buonarroti)




SE DO CÉU ELA DESCESSE

Ajude-me telefonista. A ligação é para minha noiva Maria que mora em Descalvado, perto do La Roca, perto do Tanquinho, perto da Usina Ipiranga. Oi, motorista, faça esse favor, só esse favorzinho, quando atravessar o córrego do Ramalhete me dê o aviso que eu desço. Todos vínhamos de carona na carroceria daquele caminhão de entrega de leite. O purê de muitas verduras nos atravessava, retinas e saudades, cheiro de mato, perfume de manhã orvalhada. Viemos todos de ray-ban. Os domínios dos donos da terra. Nunca soubemos quem fossem. Todos estavam dançando o twist. Onde uns lábios de pimenta te beijam afoitamente. Todo mundo desligou a TV depois do gol da Argentina. Mas do céu surgiu a ajuda. Vestida de argila, uma santa, uma guia. Ainda penso em você. Sinceramente. Beijos de língua nos empurrando para o sofá. Os domínios da entrada da sala já vencidos. Misericórdia, Maria. Em seguida veio uma segunda-feira triste. Na rodoviária eu vi Maria de longe. Era bem cedo. Tinha de estar na rodoviária para as despedidas. Em seguida você se levantou do banco do ônibus interestadual. Como se vivesse o tempo todo olhando para as coisas de Deus. Veio me abençoar com um beijo no rosto e um abraço. Seu pai de longe nos mirava. Que ele possa enxergar a verdade que é tão clara como o dia. Essa estrela de ir embora tomou Maria sob seus cuidados. Retirei o ray-ban para ganhar um beijo no rosto. Mas falei baixinho para Maria. Se você não beijar minha boca vou dizer o inferno para todos dentro daquele ônibus. Você colocou o dedo nos lábios. Shsss! Pedia-me silêncio. Eu te escrevo, seu bobo, ela disse. Uma carta é sempre uma ninharia. Ingrata essa Maria. Queria poder ir para os Estados Unidos com ela. I´m not too bad, disse para Maria. Esquece isto de infernizar minha vida, ela disse, não sou nenhuma Beatriz para te premiar com o paraíso. Ah, só porque não quero te perder assim, Maria? Gostaria que fosse diferente, mas não posso mudar meu destino, ela respondeu. Só pude lamentar: eu ficaria feliz se estivesse lá com você. Maria não acreditou no que eu dizia. Principalmente quando acrescentei que o amor é a melhor herança que alguém pode ganhar deste mundo. Ela sorria de tudo. Veja se me escreve, tá Maria? Agora corre que o ônibus já vai sair. Tchau, eu disse. Tchau, Maria respondeu.


(Mini-conto algo inspirado em O Desfazer da Beleza, poema escrito por Michelangelo Buonarroti)



Beto Palaio


Arte: Desenho de Michelangelo recentemente descoberto em Florença.

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