junho 30, 2014


O LITERATO QUE ENFARTOU NA RUA QUE O LEVAVA

É o oco do bambu que cria o som da flauta. Um preâmbulo para que meditemos no que existe sem jamais ter existido. Entretanto se inscreve aqui mais duas ou três coisas que gostaria de dizer. Depois quero o sossego de umas férias literárias, seja lá o que isso signifique. Esta minha vida burocrata é mesmo uma pândega. Quis ficar aqui para sempre, escrevendo esses livros que ninguém lê. Mas me deu uma sensação de morte hoje em plena rua. Cheguei a pensar que não chegaria até minha casa. Olhei para frente, decidido a marchar irresoluto. Para isto teria de atravessar uma longa avenida, mas essa avenida encompridou de não ter fim. Olhei para o chão e este me convidou a sentar. Lembrei-me de Quincas Borba imediatamente. Ele que descera do palanque de uma palpitante vida social para findar sozinho, numa pindaíba somente servida aos mendigos, nas escadarias de uma igreja no centro velho da cidade.

- O senhor precisa de ajuda?

Gritou um taxista parando o carro rente ao meio-fio, mas não desceu do carro para estender-me a mão. Acenei para ele seguir em frente, agradeci ao seu bondoso gesto. Aproveitei e lhe perguntei as horas. Onze e meia. O sol queimava minha pele. Havia justamente saído do banco onde conversei com o gerente sobre a situação insolúvel em que cheguei com minhas pobres finanças. Vejo sem alterações a minha realidade dentro daquele banco. A cadeira vazia do gerente, café, tosse, xícara, colher, açúcar, tosse, som do telefone, saleta sem luxos, ninguém a vista, telefone silencioso, banco de couro negro, relógio na parede, jornal de ontem, cadeira vazia do gerente, tosse, calor, suor, campeonato carioca, ações da Petrobrás em baixa, cadeira vazia do gerente, palavras cruzadas, café frio, cadeira vazia do gerente, vazio irresoluto com quatro letras, nada. E exemplarmente nada foi resolvido. Toda presteza que se espera de um capital sobriamente adiantado como fidúcia do sistema. Qualquer um perderia paciência. Eu não perdi. Pensei em Oblomov, o personagem preguiçoso de Goncharov que passou o livro inteiro deitado num divã instalado na sala. A solidão de quem tem uma indolência enorme. O aconselhamento do gerente do banco era para não consumirmos excessivamente dentro do esplendor precário da recente realidade monetária nacional. O banco não participava da divisão de misérias alheias. Fiquei sem saída nenhuma. Para frente andei. Sem me importar se resmungasse ofensas àquela casa de pecúnia. Com uma rapidez giratória a porta me colocou no olho da rua. Qualquer semelhança com a vida ordinária de quem lê os créditos deste relato. Logo esclareço que. É mera coincidência. Nenhuma responsabilidade me cabe.

- O senhor precisa de ajuda?

Ser ou não ser. Uma sensação de desmaio à beira da calçada. O que fazer nessa situação em que me encontro? Lembrei-me da cura através de mantras antigos, mas também de novos mantras como o espetacular Nam Myo Ho Rengue Kyo. Lembrei que se o coração parar na sístole, a diástole pode te salvar. Alguns gurus apregoam que o ponto sagrado do chacra mental fica bem no meio da testa. Apertei com força o dedão no centro da testa que suava frio. Depois continuei respirando pausadamente, enquanto apertava o dedo na testa. Quem sabe o chacra mental tenha me segurado pela perna daquele espírito que já fugia. Quem sabe também me salvou a recitação que fiz baixinho de uma quadra popular, que lembrava também um mantra. Era uma quadrinha que ouvi no berço de minha infância, cantada por minha mãe: sapo cururu na beira do rio, quando sapo canta é que está com frio. Então me deu uma tristeza enorme. Como é que vou acabar assim? Morrendo sentado na calçada do banco que me negou empréstimo. E minha casa, como ficará minha casa sem que eu retorne para ajeitar tudo por lá? E os meus textos no computador, meu Deus? Penso nos meus livros inéditos que estão guardados num arquivo imenso. Uma solução eu vislumbrei. Se sair dessa eu passarei para os meus melhores amigos o arquivo de livros que escrevi, com o pedido que eles repassem aos seus melhores amigos também. Quem sabe atinja aqui uma “pirâmide cultural” da distribuição livresca. É só conferir. Se repassar para dez bons amigos e esses repassarem, assim por diante, para dez de seus melhores amigos, logo teremos uma propagação geométrica que tomará o país inteiro em menos de três meses. Serei o escritor mais divulgado e multiplicado do Brasil! Imagino até que meia-dúzia de editores constituídos recebam o arquivo de meus livros através dos seus melhores amigos. Gente que não conheço, pois fazem parte da corrente de distribuição livresca da qual perdi totalmente o controle. Mas esses editores não passarão o arquivo para os amigos deles. Não é da natureza dos editores possuírem amigos para quem enviem arquivos de livros alheios. Fico aqui pensando nessa inusitada situação. Não editei nenhum dos meus livros por falta de uma conversa franca, preto no branco, com essa meia-dúzia de editores. Os felizardos donos do prelo. Esses que deixam o escritor brasileiro de lado para irem tomar champanhe e comer bolachinhas suíças nas barracas de livreiros internacionais. Tudo na oportunidade de suas visitas infalíveis à Feira de Frankfurt. Estão ali com o dedo socavado no colete para comprarem direitos autorais de verdadeiras marmeladas literárias. Aqueles livros docinhos por dentro e com uma embalagem de tinir. E quem controlaria o apetite por guloseimas desses deslumbrados infantes do lucro? Mas deixo de lado esses pensamentos desencontrados e infrutíferos. Uma moça linda e luminosa agora está diante de mim. Ela me estende a mão. Será que estou delirando e já tenho esta visão tão surpreendente e angelical? Mal tenho tempo de responder a esta última questão. Aquela jovem prestativa parece ter pressa. É ela quem me pergunta se preciso de ajuda e, em seguida, já se põe a levantar-me, coisa que fiz sem sentir a pontada no peito que me fizera desabar naquela calçada.

- O senhor precisa de ajuda?... Então, deixe-me ajudá-lo...



Beto Palaio


Ilustração sem crédito na origem.

junho 28, 2014



FRÄULEIN

Quanto rodopio num sonho de valsa! Lembram-se? Quando em toda sala de visitas que se preze havia um quadro afogado nas sombras esfumaçadas, cópia que fosse, de um Rembrandt? Aos saraus que se praticam nas melhores casas de família. Fuzarca de sala e saleta. E a nossa distraída Fräulein? Não acho que chegaria impune à perversa solidão. Assim tem sido. Desde que empurrou o guizo-da-sorte para o beleléu, sendo o seu abismo um treme-treme da Rua Aurora. De lá para cá, por tudo que a carne peca, Fräulein nunca mais se emendou. Até que essa errante Fräulein levou um ex-sargento do Exército, o Ramiro Manjericão, vulgo Manjar, até seu ninho de amor...

- Manjar, aguarde na sala-de-espera, eu vou receber alguém, é rapidinho e volto logo... É sério... Por você eu faço tudo em alta velocidade... Não fique com essa cara triste...  Conheço esse visitante assíduo dessa hora da tarde... É um pândego, um moleque que pensa que transando comigo está transando com a mãe dele... Pode isso?... Mas... Se quiser fique no patamar da porta que deixarei só encostada...

- Veja se me escuta, Fräulein... Você é moça ainda... Mas putaria não dura para sempre... Até quando essa vida, Fräulein?

- Ah, Manjar... O que me intriga no meu corpo é que ele sempre acredita em mim... Dou, dou e ele nunca que acaba... Agora não atrapalha e vem ver se quiser...

Como um bocó sem destino, fazia pouco tempo que Rodrigo Manjericão passara a morar com ela naquele antro vicioso e ao mesmo tempo aristocrático, com café da manhã requintado, salsichinhas de Frankfurt, champanhes de Arrebol, vinhos nobres envelhecendo no porão, e compota de frutas nobres de Parati na geladeira. Na portaria do local um estafeta vinha resumindo sua vigilância na quase garoa paulistana.

- Quem quer entrar só para ver não paga nada... Mas também não entra!

Isto dito pelo porteiro para os passantes da Rua Aurora. Foi assim que Manjericão entrou e acabou por conhecer a mulher de sua vida. Logo no primeiro dia, Manjericão apresentou-se à Fräulein sendo atropelado pelos vaga-lumes de suas lantejoulas. Gamou e foi retribuído nesse sentimento tão inconstante que é o amor à primeira vista.

- Volte amanhã, Manjar... Gostou do apelido?... É para eu te saborear melhor, Manjericão... Então, vem manhã?... Desta vez eu não te cobro nada...

Manjericão pouco se importava se Fräulein cintilasse na cama acetinada com mais alguém. Agora surgiu o caso desse jovem que amava a mãe e descontava na Fräulein... Este garotão que estava com ela, nos cafôfos, era como se fosse seu menino manhoso, sobrevivia a respirar Fräulein através de seus poros, como se trespassasse a espada de carne em sua própria progenitora. Manjar não fez caso do garoto carente. Era faturamento da Fräulein. Entretanto ele ficou curioso com que ouvia a respeito do garoto. Naquele dia em que Fräulein o convidou a assistir, ele ficou de espreita no batente da porta, pois Fräulein já estava, com esse meninão, em plena dança das carnes flamejantes. Gemia e gemia a Fräulein. E da porta do quarto o Manjar era apenas um boquiaberto, pouco acreditando no que via e ouvia. Assim, logo depois, surgiu um murmurejo choroso, como de um gato no cio:

- Vem menino, vem... Já vai rezar seus segredos, menino?

Fräulein sussurrou, mas olhava de soslaio para o Manjar, pois sabia ser observada, ainda com o jovem por sobre ela, indo e vindo. Manjar ficou mais curioso ainda. Foi quando ouviu algo brotando daquele suave murmúrio. Ao compasso da foda. Um pouco se confundindo com o acalanto dos gemidos da Fräulein, o amantezinho dela recitava:

- Estou indo, mamãezinha... Estou indo, mãe!...

Tempos depois... Já amancebado com Fräulein... Surge uma efeméride especial que prolongaria seu esconderijo com ela. Deste modo Manjar quedou permanentemente em coaxo, a flutuar no macio de seus cetins e rendas. Mas, fingindo-se de contrariado, ele ainda quer ter certeza de que não fez nenhuma besteira com o que decidiu:

- Você não gostou da aliança de casamento, amor?

Ela que havia sido uma doidivanas, não muito tempo atrás, no pretérito imperfeito, fazia que sim com a cabeça, ou apenas bocejava um tímido hã-hã. Entretanto, sabe-se que, um bom grelo modifica a felicidade de um homem. Apesar disto, na sequência, o Manjar ruminou um arrependimento mofino. No que pensou bem na responsabilidade de ficar com a Fräulein somente para a manutenção de seu orgulho e egoísmo:

- Fräulein... Você não está com saudade da zona?

- Quer saber?... Mesmo?... Ah, Manjar querido... Estou sim... Com muita saudade da zona...

- E se eu pedir para você voltar para a putaria... Mas sem deixar de me prestigiar...

- Manjar, você está querendo se tornar o meu cafetão?

- Não é nada disso...

- O que você quer então?

- Quero ver você feliz, Fräulein...

- Então eu volto para a zona...


Beto Palaio


Arte: Desenho de Carlos Zéfiro.

junho 26, 2014


HOTEL LUZ DEL FUEGO

No final daquela madrugada. Logo assistiremos. Uma revanche de 10 anos de traição amorosa em 2 horas de puro orgasmo. Todo empenho do amor traído e abstraído. Das ruas, outdoors, silvos, cantarias, nichos, pedriscos, bailes de periferia. A decadência passava longe de ser instituída no dia de hoje. O porteiro do hotel examina o livro de registro no balcão de atendimento. A Sra. Labasque entra acompanhada de um homem atlético que usa óculos escuros em plena 3 horas da manhã, e eles discutem se foi ou não uma tremenda gafe tentarem se hospedar naquele hotel. O casal, disfarçando um soninho de bocejos explícitos, senta para discutir o assunto, mas em confiante espera, bem ali na portaria do Hotel Luz del Fuego. O porteiro continua sentado no seu tamborete, enquanto a Sra. Labasque e seu acompanhante aguardam no horrível sofá cor-de-rosa do hall de entrada. Por muito pouco a Sra. Labasque encrencou com o porteiro. Depois eles apanharam a chave do 702 e se afastaram. Então a festinha acontece. Mas não antes da Sra. Labasque trocar de personalidade ao adentrar aquele quarto de hotel. Ela olhou-se no espelho fixo da parede. Quis fazer sentido diante de seu atraso em fazer amor. Isto sem perder a pose de mulher séria. Ela assistiu naquele espelho a sua própria imagem numa sucessão de escamas que a tornavam uma sereia especialmente esdrúxula. A Sra. Labasque trocava de pele. Agora ela era uma alegre feiticeira, toda produzida em lingerie negra, especialmente feliz em estar traindo seu marido, um que não valia um tostão furado, na opinião dela, mas que se arrogava de ser o advogado criminalista mais importante da cidade, o Dr. Jabor Labasque. Lá fora o luminoso do Hotel Luz del Fuego, na fraca claridade que desperta o Rio de Janeiro, empresta néons à neblina da manhã.

Eternamente é uma palavra que dura só um pouquinho. Tudo pelo motivo de ninguém mais envolver a bela Serena nos compromissos do coração. Ela olha para o homem adormecido entre os lençóis do Hotel Luz del Fuego. “Que bandido!”, Serena pensa isso. Não está claro para ela o quanto Jabor está comprometido com a venda de influências legais no Rio de Janeiro. Uma roda-viva que coloca o advogado Jabor Labasque dentro do esquema da justiça que prende e do habeas-corpus que liberta. O momento latejante que atravessa é mesmo infernal. No entanto, Jabor falara algo terrível durante o sono que Serena ouvira claramente. Essas frases soltas ficam martelando em sua mente: “só eu sei quem matou Márcia Labasque”. Aquele assunto não deixava de constar nos tabloides da cidade. Nunca que chegavam a um acordo sobre quem seria o matador da esposa do importante advogado. Para Serena, embora a frase de Jabor tenha sido bastante esclarecedora, no fundo não queria dizer muita coisa. Afinal, ele “saber quem matou sua esposa” seria uma declaração bastante superficial. “Jabor poderia facilmente argumentar que o que ele “sabe” é o que leu pela imprensa”, pensou Serena acendendo um cigarro, ainda observando Jabor Labasque que agora dorme ao seu lado. Ela poderia acusá-lo, mas não está claro para ela se a acusação o encheria de raiva em vez de culpa. Assim é que Serena liga para a portaria e pede uma dose de uísque. Logo alguém bate no 805 do Hotel Luz del Fuego, após o que Serena volta a sentar-se na cama, acomodada pelo travesseiro que coloca às costas, onde sorve lentamente o seu uísque preferido.

Isto mais se parece com uma armadilha. Entretanto, pensando bem. Respiro a energia do sim. “Sim, eu vou”. Na hora combinada ele passou no meu escritório. Mas que harmonia insana eu tenho dentro de mim. Vi quando ele estacionou seu carro na rua em frente. “Vou ou não vou?”, pensei na hora em fugir, e até em me esconder. “Esse moço faz o que quer de mim. Será que não tenho mais vontade própria?”. Patricinha Labasque faz charminho, mas na verdade nunca tinha ido a um hotel de encontros. “Será que aceito?”, Patricinha pensou, depois logo se preocupa em fechar a porta do escritório de advocacia de seu pai, o notório Jabor Labasque, mas não sem antes colocar na bolsa alguns produtos de beleza, como o perfume que gosta ou seu batom preferido. “O que você vai fazer comigo?”, ela pergunta para Ronald assim que entra no carro. “Vamos tomar chope no Barril 1800”, ele diz e olha para ela fingindo que o assunto principal, o de irem juntos para um quarto de hotel, não fosse algo importante. Pouco depois, com uma taça de chope à sua frente, Patricinha olha em direção à praia de Ipanema. Finge que aprecia o fim de tarde que leva os últimos banhistas se afastarem da areia. “Socorro!”, ela pensa. Logo ele vai novamente me fazer a proposta. Ela se arrepiou inteirinha. Ronald aparentava não dar importância ao fato. Tinha um pouco de espuma de chope nos lábios quando falou para ela: “não esquenta com isso”. Patricinha Labasque pensa mesmo em dizer não. “Será que ele imagina que sou alguma safada?”. O moço parecia adivinhar suas questões mais íntimas. Disse que ele não se importaria se não fossem naquele dia. Disse para ela não se preocupar com isso. Disse que gostava demais dela. Disse que o que ela decidisse estava decidido. “Ah que alívio, ele está me ajudando a decidir, então eu não vou. Não vou não”. Sua respiração está ofegante quando entraram no carro. “O que quer fazer?”, Ronald lhe pergunta. “Nós vamos, eu quero, vamos sim”, rapidamente respondeu Patricinha. Então o carro deles foi aos poucos se afastando do tráfego de Ipanema, cruzando praças e viadutos, enquanto seguia em direção ao Hotel Luz del Fuego.


Beto Palaio



Arte: Thomas Saliot – Olhando na janela - 2013

junho 25, 2014



AS RAMAS DA VIDEIRA

Quem me dera. Ela quis que eu ficasse quieto. As ramas da videira não têm espinhos. Não descuide que corte a mão, pois os frutos de espinho são outros, a rosa nem é fruto, porém se defende com alguns. Espinhos. De flor em flor. Contou seus machucados. Como se arranjassem um meio de revolver e arar e adubar e espargir sementes de uva na terra e depois esperar pela chuva. A rama de juá tem muito espinho. Assim como o abacaxi e o ariticum são espinhosos. Alguns são mais doloridos que os outros. Em imitação é a vida que começa em um tudo e, nem bem começa, já toma o caminho de volta. Ouviu-se isto no sertão nacional. Manuel Figueiras contratou um peão por nome Josualdo para que tomasse conta de suas doze vaquinhas, mas com a restrita ordem para que Josualdo ficasse longe de sua filha Morena, que era sestrosa e andava na flor da idade. Depois Manuel Figueiras tomou um trem para Belo Horizonte e de lá foi de ônibus para São Paulo. Consta que a vida sempre dá alguns carrapichos envenenados para um cabrão roer. A cidadezinha de Manoel Figueiras fica encravada no meio de Minas Gerais. Vem de lá o tocador de fole Aderaldo Castelo, o qual calhou justo de morar na mesma localidade do Manuel Figueiras. Aqui temos de interromper esse trem lotado de festas e risos. E, pois não é? Ouvidos e bocas são o que mais existem nas cidadezinhas mineiras, e noutras tantas por aí. Num solilóquio de saci assoviar no escuro. Eis que o tempo fia. Duas brisas de abrigar ventanias e duas de esconder temporais. Quatro invernos somente. Portas adentram recintos de lustro e serventia. Manuel estava no salão de barbeiros do bairro de Pirituba, em São Paulo. Ali desconfiava ele, olha aqui e acolá, desalijando suas intempestivas barbas para fora de seu queixo de estimação. Gelar em frio é por vezes prato que se serve quente. Foi assim. Quando de espaldar alto ele ouviu um isto de achincalhe dito pelo sanfoneiro Aderaldo Castelo, que por ter também a profissão de barbeiro, desde há um ano, mais-ou-menasmente isso, trocou sua sanfona pelo pente, navalha, espelho, aquavelva e talco. E a conversa viaja longe numa cadeira de barbeiro. Foi Aderaldo quem tocou no assunto que dizia respeito ao sítio de Manuel Figueiras: “soube que suas vacas andam magras e sua filha barriguda”. Fora o ar que se tem de sorver, o tempo que há para entender, o pigarro que há de limpar a garganta de responder. “É mentira, vagabundo!”. Aderaldo, o agora barbeiro, ouvira isto de que a filha de Manuel andava barriguda, e também das vacas magras, através de uma parente dele chamada Odete, que ouviu da Bebel, que ouviu da Linderléa, que ouviu da Adelicia, que ouviu da Marilene, que ouviu da Valdelú, que ouviu da Joana do Arthur, que ouviu da Das Dô, que ouviu da Lucianinha, que ouviu da Carminha, que ouviu da Berenice, que ouviu da Sãozinha, que ouviu da Maria Olinda, que ouviu da Paulina, que ouviu da Judite, que ouviu de Dona Ana, que ouviu da Soráia do Bastião, que ouviu de Catarina, que ouviu de Dona Amália, que ouviu de Josália, que ouviu de Sandrinha, que ouviu de Severina. Lá na ponta do repassado da converseira. Quando Severina, a primeirona, soube por um vizinho da casa de uma prima de Morena, a justa filha de Manuel, o que essa prima afirmara foi que Morena estava era mal das tripas, pois comera da fruta verde do jambolão e que o ajudante de serviços, por nome Josualdo, estivera morre não morre por ocasião de ter tomado um coice de raspão de um cavalo que teve de ajudar a castrar numa cidade vizinha. A estória, que era essa, correu mundos e fundos e porteiras e quintais e caras e bocas. Desdisse quem havia dito antes, reafirmou quem duvidava da enquete. Nessa carrapateira de contar. Um enfeixado de ramas de videira que se entrelaçam. Dali para cá, de cá para lá. A estória sempre muda de feição. Foi nesse esparrame que o meio-assunto caiu no ouvido do agora barbeiro Aderaldo Castelo e ele, dada as circunstâncias, foi chamado de vagabundo pelo sitiante Manoel Figueiras. “Tem coisa que um homem trabalhador não gosta, sr. Manoel Figueiras, e uma dessas coisas é ser chamado assim de vagabundo”. E disse mais: “Sou barbeiro, uma profissão que pode acontecer a qualquer um que não tem terra seca, nem vaca magra, nem filha barriguda para criar encrenca com quem é trabalhador”. O Manoel Figueiras espumava de ódio e fez menção de que iria tirar um revolver no aprumado, justo e rente, do seu por detrás, ao rejunte de ódio e chistes, do cós de sua cintura. Aderaldo Castelo foi mais rápido com sua navalha. Logo correu sangue dentro da barbearia. Juntou gente. Deu policia de promover acentuação de instituído poder, com lanternas acesas e sirenes ligadas. Juntou jornalistas e autoridades bem em frente ao pequeno comércio nas adjacências da barbearia. Deste modo Aderaldo foi preso e Manoel foi para o necrotério. “Acontece que sou um bom barbeiro!”, ainda disse Aderaldo Castelo diante do delegado que lavrou o caso e recolheu o barbeiro para o xadrez. Uma semana depois. Na sombra de um canto de cadeia. Aderaldo Castelo se penitencia: “tenho até medo de mim, não sou de confiança, sou mesmo muito perigoso... Mas tenho uma baita saudade de minha sanfona... Será que é contra a lei tocar sanfona por aqui?”. 


Beto Palaio


Arte: Inimigos entre as ramas da videira e os elefantes - desenho Rajput do século XVIII.

junho 24, 2014


O JULGAMENTO DE ANITA MALFATTI NUM DIA DE SÃO JOÃO.

Três dias depois, isto presumidamente, uma moça passou aperturas para atravessar por uma estreita passagem. O apertado desfiladeiro, tal amarradura de varas de taquaritingas, ficava para lá dos portões de Araçoiaba, tiquinho de nada perto de Jabaquara, donde a avanhandava de um cachoeirão se esgoelava. Ali a tarde estava assaz enfermiça e azucrinante e nublada. Grandes gotas de chuva começaram a salpicar os ombros nus daquela moça. Havia um barulho de estrondos à sua frente. Avançava ela, numa trilha de pedra, seguindo aquele acanhado caminho estreito. Logo sua imaginação lhe sugere a figura de um pavão que voa em sua dianteira, em meio à tempestade. A moça caminha com os olhos fitos na emblemática ave. Até que os dois, ela e o pavão, deixam aquele precário caminho de pedras e se defrontam com uma gigantesca cachoeira. Não havia mais ninguém ali senão os três: ela, o pavão e a cachoeira. Só então o trio é revelado: “Sou Avivaz, seu advogado”, disse o belo pavão diante daquele encontro para o julgamento inadiável, aquele que faz parte dos três dias de agonia do qual ninguém escapa. A moça a ser julgada é Anita Malfatti, colorista das artes do Brasil. Já o Juiz, esse que surgiu barulhento e espalhafatoso, seu nome é Corredeira, um deus muito aplicado em aquilatar, diga-se, com muita precisão, ao emprestar sua caneta de fluir tintas ao correto agir.

O julgamento começou assim, meio sem graça, mas situado num lugar muito lindo, ensejado num círculo que se abria numa clareira cercada de tudo que era beleza deste Brasil. Mesmo assim, tudo ali parecia ser paranóia ou mistificação. Mas não, nada acontece por acaso. “Once upon a time”, lavrou deus Corredeira no livro de atas nº1, “Once upon a time houve no Brasil um movimento de arte chamado Pau-Brasil”. Aquilo estava maçante, perrengue, brega, inaceitável. O julgamento se arrastava entre descrições pormenorizadas e longos espaços dedicados à fantasia. A ré Anita Malfatti estava aborrecida diante de tanto palavrório, com isto ela se sentia fraca e cansada. Nessa soneira, enquanto ela meneava a cabeça para o adormecer, estava mesmo quase cochilando, de repente sobreveio uma terrível batida de martelo. Era o Juiz Corredeira que liberava o momento da audiência para o advogado Avivaz, o pavão. Um minuto só ele pediu ao Juiz, e saiu da sala retornando com suas testemunhas. Ali se apresentaram poetas, pintores e escritores. Todos eles colegas de Anita, que se alternavam em afirmar dela ser o máximo, muito boa mesmo, muito amiga, muito talentosa, excelente pintora, aliás, sem nenhum exagero, uma pintora especial, reafirmavam eles. Só então Avivaz pediu a palavra. O pavão abriu sua cauda em leque. Disse que só falaria umas palavrinhas para que constasse nos autos do processo, já que suas testemunhas haviam dito tudo o que poderia ser dito de louvável sobre a artista Anita Malfatti. “Eu só digo ao senhor Juiz e ao distinto jurado, que toda arte é ingênua. Toda arte é fugaz. Toda arte é feita para o momento em que o artista vive e sonha. Toda arte...”. Chega! Chega! O Juiz Corredeira estava ficando possesso. Cansou-se de tanto ouvir enaltecimentos à arte. E suspendeu o julgamento por quatro horas e meia.

Quatro horas e meia depois o jurado novamente se reúne para a audiência do Juiz Corredeira em relação à inquirida Anita Malfatti. Desta vez Avivaz, o advogado pavão, estava mais que preparado. Fez cara de enfezado e focou na defesa com empenho deveras magnífico. Na sucumbência da brevidade, Avivaz fez constar nas atas da defesa o que se diga. “Que ali se conste isto!”. Anita, sim, Anita... Um dos seus pecados capitais—ele disse que seria um, mas que poderia abranger multitudes—este pecado foi o fato dela ter sido excepcionalmente amorosa com a vida. Este é o dilema do andamento desta defesa de Avivaz, o pavão, momento em quem ele precisa esclarecer, ponto a ponto, o mapa desse ato indistinto que é o amar intensamente. Logo aconteceu, como que em seu socorro, um fato marcante onde, desde lá de fora, a baunilha, o roseira e o cafezal em flor, aliados ao todo verdejante que prolifera no entorno do círculo daquele julgamento, por um desses acasos da penitência da artista que amou ao intenso, justo naquele momento, quando Anita se apresenta aos olhos do júri, surgiu tão maviosos perfumes, bem brasileirinhos, ao aromático do espalhar seus excessivos dedos de fragrâncias por ali. Avivaz se penitenciou de lágrimas nos olhos, e o deus Corredeira voltou atrás no seu julgar apressado e nem mais por um minuto pensou que amar seria pecado. Anita, entretanto, cansou-se daquela audiência. Quis falar claramente com o seu advogado pavão. “Sigo a voz do mundo, disse Anita, então me penitencio, ou o amor que eu dediquei foi malversado, caso a arte tenha me devotado injurias, ou que tivesse faltado, caso eu a estivesse desonrado”. O pavão olhou para o deus Corredeira, para quem discretamente sugeriu um “sim, perdoai”, ao menear sua cabeça coroada. E nada mais foi perguntado, nem para Avivaz nem para sua cliente Anita Malfatti, a qual estava agora liberada para doar sua arte em seu novo e definitivo reino.


Beto Palaio


Arte: pavão voando no meio da tempestade – Séc. XVI

junho 22, 2014


QUASE NOITE

Quase noite: hora em que os morcegos se disfarçam de pássaros. Eu sinto muito. Estou aqui bestificado. Porque não pensei nisto antes? Erros, dizem vocês, erros fazem parte do aprendizado juvenil. E eu os cometi aos montes. Tanto que. Há coro e velas acesas nas igrejas, mas não me convencem. Decoração natalina nas ruas, mas nunca dizem nada para mim. Num disco 78 rpm, os Meninos Cantores de Viena me parecem bregas demais. O que fiz para ganhar reputação de incorrigível? Apenas caminhei pelo mundo. Ora sendo de sobra, ora sendo de saldo. Apenas amei demais. Amei uma mulher de cabelos rubros como folhas de outono. Sua voz me tentava sensualmente, no quase escuro, como se fosse me pecar no crepúsculo. Por vezes ela se vestia de azuis profundos. Por vezes de cinzas terreais. Falou-me ela muitas vezes sobre as infinitas constelações, onde incluía a matemática grega que cedia catetos à hipotenusa. Amei loucamente essa mulher. Seus lábios brilhavam como brasas desfalecidas. Em seus lábios definitivamente me perdi. Quase noite: cambiante é este minuto onde há tempo para decisões e revisões que o próximo minuto revoga.

Quase noite: quando os grilos começam a ficar carentes e chorões. Um recorte angelical no que se conta com tanto empenho e fé. São gritos ao calvário. Que será isto? São ais de contornos infrutíferos. E que dor seria esta? Imensa, gigantesca, incomensurável. Dor em que até a Virgem padeceu. Foi quando os seus braços sentiram esse vazio. Pelo desaparecimento de seu filho amado no calvário. Que se aclare o que está desperto. Luz costurada e bordada por dentro e por fora. É porque estamos vivendo essa fé imensa. Aonde até os anjos vêm cantar. Os recortes. De papelão. Prédios inteiros constritos dessa forma. Eles se perdem no alinhavado do lusco-fusco. Caminhamos todos ao longo deste chão batido. Todas as folhas caídas se assemelham a uma língua tingida de cascas de laranjas marrom-avermelhadas. No ar fresco não há dor. Aqui Cristo não morreu. Um pássaro gorjeia como lembrete à sua mãe. Todos os seus amigos voaram para se esconder do Inverno. Mas esse pequeno pássaro tem aqui uma missão. Ele faz o melhor que pode. Ainda mais agora que o sol está brilhando lindamente por detrás das últimas árvores na linha do horizonte. Quase noite: talvez o mar  tente até tirar um cochilo nesta noite.

Quase noite: meninos jogam futebol até não enxergarem mais a bola. Uma certeza me espia de soslaio. Minha viagem começa aqui. Meu futuro é o caminho do que foi dito e feito. Como a estrada que ficou para trás. A rua da infância. O prédio demolido da primeira escola. A casa de meus pais. O tempo é um mercado deveras apinhado de acontecimentos. O vinho envelhece no porão, meu amor foi para a guerra, o mapa da juventude está irremediavelmente perdido. Entretanto há um alento. Sigamos então, eu e tu, destino meu. Quando a noite se acomoda lá fora no edredom do céu. Como uma criança que adormece no banco detrás de um carro. Passamos momentos de doce entretenimento. Vamos, o bebê-noite e eu, passear pelas ruas já quase desertas. A promessa da noite já faz acender os luminosos dos motéis baratos. Correm nos trilhos os trabalhadores educadamente treinados a voltarem para casa. Os restaurantes oferecem peixes pescados na hora. Todo argumento agora parece ser tedioso. Porque então não nos perguntamos: o que somos, de onde viemos, para onde vamos? Cansaram-se desta premissa secular? Crianças são sempre crianças. Os meninos jogam bola e falam de Michelangelo. As mulheres apressadas falam de Michelangelo. O motorista do ônibus que espalha sua fumaça negra fala de Michelangelo. Sentado aqui no telhado. Eu assisto o pôr do sol sobre a cidade. Uma única bola vermelha de fogo se vale para tudo tingir de matizes infindos. A coloração empresta aos carneiros de nuvens um tom de rosa brilhante. Esses carneirinhos não são nada dóceis. Eles se juntam uns aos outros socialisticamente e tornam-se arautos da próxima tempestade. Mas não agora que fios indizíveis de tons gritam por Michelangelo. Agora é quase noite. E é quando a primeira estrela surge para cintilar suas eternidades no âmbar.


Beto Palaio



Arte: PATTY BAKER - O sol se escondendo em Utah - 2012

junho 21, 2014

The Voynich manuscript is full of information, but what it says has been a mystery for 100 years.

FARMACOLOGIA POPULAR:
DO AMOR-DEIXADO AO AMOR-DE-MÃE


Amor-deixado, chá-de-flor-de-laranjeira, neosaldina, cabriúva, louvado-seja, óleo-de-rícino, erva-de-santo-filho, água-de-melissa, eucaliptina, angelim, louro-verdadeiro, erva-cidreira, banho-de-alecrim, penicilina, joázinho, gabiroba, laranja-da-china, boldo-do-chile, chá-de-frade-bento, cordão-de-são-francisco, folha-do-caiu-no-rio, urinol-de-ágata, erva-das-lavadeiras, jatobá, elixir-de-inhame, taiúva-de-flor-roxa, broto-de-pinheiro, amoxil, cabreúva-estrelada, maxixeira, guaco, alfazema,  quiproquó, arroio-chuí, pasto-de-abelha, cumaru,  pau-de-canela, dente-de-leão, quinino-verdadeiro, rubim, papo-de-anjo, tetrex, pau-de-cachimbo, pau-de-cotia, jurema, chuchu-da-serra, sapucainha, alcachofra, gravatá, canudo-de-pito, fruta-de-barbado, fruta-de-comona, calix-bento, melão-de-são-caetano, buscopan, dente-de-alho, itacoatiara, emulsão-de-scott, rabo-de-galo, pé-de-anjo, dramin, rosa-mosqueta,  mata-piolho, ouricuri, cipó-de-guaxo, óleo-sapucainha, pronto-alívio, baité, igaraçu, losna-perene, atroveran, erva-de-carpinteiro, chá-de-calêndula, erva-dos-carreteiros, chá-de-camomila, arrudinha, vick-vaporub, bálsamo-sagrado, hortelã-pimenta, hortelãzinho, gloria-a-deus, lugolina, macelão, mil-em-rama, alecrim, mil-folhas, novalgina, lombrigueira, xarope-de-rabanete, mão-santa, mentruz, xarope são joão, abaiará, catulos-da-paixão, noéis-rosas, ambrósia-do-méxico, terebentina, caácica, cambrósia, chá-dos-jesuítas, hipoglós, cravinhos-do-madeiro, alka-seltzer, erva-das-cobras, erva-de-santa-maria, cera-do-dr-lustosa,  aracati, engov, erva-de-santo-antonio, emplastro-poroso-sabiá, erva-pomba-rota, erva-santa, biotônico, salsaparrilha-das-missões, acajaíba, acaju, açúcar-mascavo, barro-preto, caju-da-praia, guizo-de-cascavél, casca-antidiabética, cana-de-jacaré, caldo-de-galinha, benzedeira, assa-peixe, cavalinha, mucuracaá, brasa-dormida, breve-cerzido, minancora, pau-de-guiné, pipi-de-piripipi, raiz-de-congonha, raiz-de-gambá, sadol, leite-de-égua, raiz-de-guiné, raiz-de-poranga, raiz-do-congo, piti, cedro-potiguar, amansa-senhor, barbatimão, amor-dos-outros, emburembo, hibisco, erva-de-alho-poró, flor-das-ipanemas, erva-de-guiné, flor-de-ir-embora, gambázinho, gerataca, iratacaca, macura-caá, cola-de-cavalo, erva-de-bicho, melhoral, lixa-vegetal, milho-de-cobra, olho-de-cabra, rabo-de-tatu, band-aid, aguardente, vinhático, cipó-cabeludo, erva-de-macaco, mercúrio-cromo, cafiaspirina, folhagem-do-chorão, guaririnha, ibicuitinga, mulungu-do-ceará, coquinho-de-brejaúva, samambaia-verdadeira, chambá, tinguá, trevo-cumaru, suco-de-pau-brasil, trevo-do-pará, anador, água-de-lavanda, chachambá, árvore-avenca, ginkgo-biloba, aguapé, cassoneira, cega-olho, hepatovil, coral-verde, perdizes, coroa-de-cristo, dedo-do-diabo, binotal, gaiolinha, labirinto, mata-verrugas, colubiazol, banha-de-pirarucu, farmácia-do-almeidinha, árvore-de-lápis, eparex, árvore-de-são-sebastião, suco-de-aipo, chá-mate-real, missiva-do-brejo, aveloz, nó-na-madeira, cachorro-pelado, chá-de-campanha, chá-mineiro, chapéu-de-couro, pastilhas valda, congonha-do-brejo, doril, perpétua-do-brasil, panelaço, joás, sempre-viva, terramicina, matozinhos, regulador xavier, acônito-do-mato, caaponga, privina, carqueja-alegre, piá-em-sendo, sopradinha, ungüento-santo, cabeça-branca, carrapichinho, lúpulo, aguapé, caruru-bravo, couve-verdadeira, feijão-preto, couve-de-bruxelas, alopurinol, amaranto-verde, panacéia, manga-rosa, paratudinho, zagalo, perpétua, perpétua-do-sagrado-coração, luftal, raiz-do-padre-sabino, raiz-do-padre-quaresma, milho-de-canjica, breu-almécega, breu-branco, jerimum, zapalito-de-tronco, gelol, saci-as-pencas, sal-de-frutas-eno, abóbora-amarela, sulfanivacim, carvãozinho, lavolho, abóbora-moranga, fosfosol, pára-pedro, cabeça-de-nego, sapoti, cabaceira, breu-branco-do-campo, cicantaa-ihua, elemi, erva-feiticeira, goma-limão, guapoy-ici, ibicaraica, sucupira, unha-de-gato, pata-de-vaca, icaraiba, ipê-roxo, jambolão, icenso-de-cayena, cica-de-espirradeira, icica-assú, sete-sangrias, pau-tenente, jauaricica, mescla-metade, incenso-e-mirra, pau-de-breu, resina-icica, tacaamaca, ubirasiqua, guaraná, almécega-brava, fubá-mimoso, capim-santo, nenê-dent, biscateira, anizete, pecadilho, sonho-de-valsa, arrozina, manacapuru, pílula-de-alcaçuz, feijão-de-corda, nhamundá, passiflora, tié-dasdô, espreguiçadeira, espalha-trovoadas, almecegueiro-bravo, barulhinho-bom, beijinho-de-princesa, pariparoba, almiscareira, sonrisal, árvore-do-incenso banana-brava, caraguatá, benzetacil, urucum, gravatá, eparema, pãina-de-tabôa, alecrim-de-parede, camomila-nacional, sete-pecados, linhaça, carrapichinho-de-agulha, sálvia-vermelha, beijo-de-moça, chá-de-lagoa, água-com-açúcar, losna-do-mato, banho-maria, piretrina, beladona, macela-do-campo, gengibre, marcelinha, iodo-verdadeiro, ora-pro-nobis, xarope-de-limão-bravo, hóstia-da-eucaristia, sete-carinhos, amor-de-mãe.


Beto Palaio


Arte: páginas do Manuscrito Voynich.

junho 20, 2014

Foto: AH, O AMOR... SEMPRE O AMOR !!!

http://litteratour.blogspot.com.br/

Textos de Beto Palaio

FAÇA-SE A ROSA!

Exageros literários e imaginação à solta, já se vê. Entretanto houve mesmo a crença na qual se confiava que um bom início de conto jamais deveria usar a palavra “exageros”. São crenças em que o grafismo melhor convencia, para além das potentes circunvoluções do significado. Em descrições assim coisificadas, o corpo do texto sempre pede por uma sequência lógica. Com esta finalidade vislumbramos subitamente um novo propósito. No correto da verdade. Com os poderes do sol incidindo na acetinada pele de uma rosa. Aqui e ali. Uma preguiça enorme balbucia seus desaforos. Mas. Nem pense que iremos sacrificar a flor em função da preguiça. A Natureza age igualmente assim. Muitas vezes ela tentou superar a beleza indizível da rosa já instituída. Tudo pela intenção de uma nova beldade que ela mesma criaria. A Natureza acreditava que isto seria mesmo algo diferente de tudo que foi concebido antes, embora a sua imensa preguiça sempre lhe estancasse o rumo. Neste aval. Tudo lhe tolhia o correto proceder, até que a própria Natureza agiu e finalmente triunfou, “eu vos fiz”, ela diz, “eu vos fiz”, a Natureza reafirmou, “eu vos fiz rosa magnânima!”, finalmente consegue se explicar a Natureza. Ao mundo, o emaranhado, o milagre da criação se deu. Eis que surgiu a rosa magnânima.

As rosas magnânimas são ardilosas por ocultarem entre suas belas franjas algumas poções secretas. Dizem elas do tamanho ideal do amor que gostariam de compartilhar com o mundo. Numa de suas esquinas feitas de pétalas, um amante ocasional se esbarra com uma mulher lindíssima. Foi a primeira vez que se viram. O pôr-do-sol era róseo como um revoar de flamingos. Veio então surgindo através da água da baía um brilho de inspiração em forma de desabafo. “Você é linda”, disse o moço, “sua beleza alarga meu coração em uma amplidão inimaginável”, isso disse o rapaz para início de conversa. A rosa, dona de todas as esquinas que possui, não se aguenta de tanto rir, “assim o rapaz não conquista ninguém”, sussurrou de si para si a rosa magnânima e trocou logo de lado, passando a induzir telepaticamente a moça para que ela falasse algo que salvasse a situação, “eu digo”, principiou a linda moça, “eu digo que o que você diz é bizarro, pois estou bem na sua frente e gostei também um pouco de ti, mas nada entendo do que falou”. O rapaz fez sinal de silêncio, se afastou um pouco e apanhou—sim!—uma pequena rosa de uma floreira que estava, vejam vocês, bem ali num muro baldio. Isto a rosa magnânima, a outra rosa maior, a rosa dona das esquinas de pétalas, gostou de ver e tratou de colocar seu fenômeno natural de beleza a disposição daqueles dois. “Eu digo agora”, o moço diz, “que se eu cair de joelhos por você, não seria nada exagerado”. Então a moça entrou nessa conversa antiga de princípio de namoro. E a rosa magnânima abraçou mais um casal para suas tramas de perpetuar entre os humanos o tão festejado amor.

“Ou tenho de falar bem alto?”. Principiou a outra estória sobre rosas.  Nesta estória a rosa não é mais nem magnânima, nem dona do universo. Pelo contrário. Esta rosa é bem pobrezinha. Você—sim, você que nos lê—nem imagina a extensão da pobreza desta rosa. O tostão que tivesse no bolso já o transformaria em milionário perto da penúria dessa rosa. “Será que posso começar a contar a minha estória?”. Disse a pobre rosa. Então principiou a contar a estória dela na terceira pessoa. Mas não antes de um preâmbulo do narrador: “atentai leitor para quando por acaso observar uma criatura luminosa atravessar a rua com os braços cheios de pacotes de presentes”, disse o narrador, “nem imagina o quanto essa criatura seria capaz praticar baixezas, só para tentar humilhar uma pobre rosa”. Por todo lado, pano de fundo, teares abandonados, um cenário de praia em Guadalcanal com alvoroço de Os Nus e os Mortos. Casualmente estamos em 1959. Acontece que sopra no Verão a fatalidade em forma de tempo circunscrito. Aqui surge a rosa, mas não aquela outra super-rosa magnânima criada pela Natureza, porém a rosa no comum dela mesma, a qual argumentava com o Verão, aos moldes da formiga que tenta perturbar o juízo da cigarra: “ah, o seu caminho é sempre claro, Verão, no entanto, eu fico aqui de pétalas novas me oferecendo ao mundo, enquanto você me brilha e me brilha e me brilha”. Pode ser que assim seja de fato, já interferindo, grafou o narrador, que definitivamente o Verão tenha um entendimento diverso da rosa, pois ele em geral, o Verão, nunca sabe o que está procurando, apenas ilumina, esquenta e passa. Mas a pobre rosa nem estava de fato muito preocupada em entender o Verão. Ela vivia sua existência de rosa, e pronto! Então, assim como um rio não tem outra escolha senão fluir, o tempo de estio, que começa num lago, longe dali, nas montanhas do vir-a-ser, principiou a entrar em luta mortal na troca das Estações. Eis o irrefreável embate do Inverno contra o Verão, embora, pudesse também ele desaparecer na luta seguinte contra a Primavera, agora o Inverno sabe que a vitória pertence a ele, assim é que se confirma, no empurra-empurra do dia após dia, vai um dia, vai outro dia, ele Inverno dá uma chance final ao Verão, estuda-o numa curva deserta, observa-o por detrás de uma banca de revistas, segue-o até uma sorveteria. Acontece que o Inverno tarda, mas nunca falha. Por fim, arre, veio o tempo frio fundir-se de corpo e alma com o vento gelado e o gelo das manhãs sem sol. Com isto. Aconteceu o pior para a pobre rosa. Ah, a pobre rosa!


Beto Palaio


Conto escrito como homenagem ao post criado por Mirza Sanchez no Facebook  para compartilhamento do conto Ah, o Amor... Sempre o Amor!, matéria anterior deste Litteratour. Para esta nossa querida colega dedicamos a postagem de hoje (inclusive a ilustração acima foi utilizada por Mirza Sanchez para o compartilhamento deste citado conto do Litteratour).

junho 18, 2014

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AH, O AMOR... SEMPRE O AMOR!


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AMOR CERTINHO E BONITINHO - Amor fronteira com quem? Malhas de um tempo de alegrias da melhor qualidade. No coração, 20 anos, no documento autorizado de viver, 20 anos também. No país do amor, lágrimas de alegria, vizinhas sorridentes, vaga de estacionamento livre em frente ao prédio, água morna na banheira, champanhe no gelo, pitubas de beijos pré-orgásticos e prazer exorbitante em decúbito dorsal. A boa sorte festivamente dividida com a jovem concubina. Isto tudo que estou escrevendo é tão quente quanto um ovo quente.



AMOR ARDIDO E CALIENTE – Lua de mel em Poços de Caldas. Dentro dos limites esse amor pode realizar o impossível. O véuzinho, insígnia dos países baixos que se dispôs a aguentar, até então, a todos os ataques, agora tem de se render. Tudo corre tão depressa. Namoros no portão, festa de noivado na casa do sogro, convites impressos na grafiquinha do futuro cunhado, casamento em dia de sol causticante, bolo de casamento de um metro e meio de altura. Contudo, naquela mesma noite, o cio emperra. Mas no dia seguinte, bem cedo, o diabo ataca de pijamas. Tenta, tenta e consegue. Ocorre que: Meu demônio é assassino e não teme o castigo.



AMOR DATILOGRAFADO – Um belo dia. Prezados senhores. Mas que surpresa! Você não é aquele loirinho que sentava na primeira carteira nas aulas do segundo colegial? Mas que maravilha! O quê? Ficou casado vinte anos com a Norminha? Aquela que a mãe é dona de uma lojinha de armarinhos? Sim, conheço a mãe, mas a Norminha eu conheço só de vista. Ah, vocês moravam em Los Angeles? E a Norminha? Continua em Los Angeles? Ah, eu sei. Mas isso passa. Olha para o futuro que você é jovem ainda. Nem pense nisso. Logo você conhece alguém aqui na nossa terra mesmo. Mas não é verdade? Nem que seja um anjo caolho, claro. Passou. É o seguinte: a dissonância me é harmoniosa. A melodia por vezes me cansa.



AMOR PREVISTO PELOS ASTECAS – Instintos podem nos enganar. Nossa sabedoria, errar. Nossa inteligência, confundir. Estamos no meio de um planalto de alvorada incerta. Barco à deriva. No entanto, um acontecimento fortuito nos aproximaria. O mundo iria acabar em Dezembro de 2012. Fizemos a besteira de assinar um contrato de casamento às pressas. Sua mãe apareceu para morar no nosso apartamento no mês de Janeiro de 2013. Nosso casamento durou até Março do mesmo ano. Perdemos tudo. Nada estava em meu nome, e nada estava no nome dela. Neste mesmo instante estou pedindo ao Deus que me ajude. Estou precisando.



AMOR EMPLASTO SABIÁ - Gruda que a fome é certa. Faz que vai ao centro do mundo conhecido pelo homo sapiens, mas dá uma guinada e nos deita fora da composição regiamente pilotada por sogro, sogra e cunhados. Salve-se quem puder de um bolo de rolo dessa qualidade. Féretros com missa de mês, visita demorada da Tia Maricota e aniversário de criança com bolo mofado o qual foi encomendado da prima do Pestana, o confiável porteiro do edifício. No entanto ela, a ex-esposa, se salva do naufrágio total: Tenho que seguir a linha pura e manter não contaminado o meu it.



AMOR VOU EMBORA – Na festa de churrasco do final de ano. O marido era chefe de seção. Sumiu durante o churrasco com a secretária da diretoria. Em estado de graça ele apareceu pelos lados da piscina como se estivesse vendo tudo avec rose sé la vie. Entretanto. A crise do petróleo não agitou tanto quanto a baixaria que Neuzinha, sua mulher, lhe pregou. Ali ela engasga, fuma e tosse. Mas uma coisa é certa. O dragão do futuro indicativo demonstra que em casa um pára-raios terá de ser instalado no corredor, entre a sala, a cozinha e o banheiro da empregada. Ah, se eu sei que era assim eu não nascia.



AMOR DE LUA NOVA – Está na hora de recomeçar planos adiados. Momento ideal para dar chance apenas a quem lhe promete o prazer. Às vezes um amor descompromissado é tudo o que você precisa. Mergulhar com tudo na recuperação do ego perdido em seu frustrado casamento com o Marquinhos. Então está tudo certo. Não tem engano não. Hoje de tarde nos encontraremos. E não te falarei sequer nisso que escrevo e que contém o que sou e que te dou de presente sem que o leia.



AMOR BEIJA-FLORES – Escolha alguém em quem confie. Um alguém que se dedique integralmente a você. Deposite nesta pessoa seus desejos e medos. Não olhe para trás. Águas passadas não movem moinhos. Por falar em água, mergulhe num mar azul, ao qual eles, os pobres mortais, chamam de felicidade. Queira ser o sol e entre pela janela da pessoa que escolheu para amar. Doravante você é ele, e ele é você. Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser: eis os limites de minhas possibilidades.



Beto Palaio e Clarice Lispector (em itálico)



Nota: texto com frases adicionais em itálico são citações retiradas do livro Água Viva, de Clarice Lispector

Créditos: Ilustrações creditadas conforme o trecho: Ilustração inicial da matéria é de  Reuben Negron; Ilustração em "Amor de Lua Nova" é de Adebanji Aladi. As ilustrações não citadas são anônimas.

(Publicado inicialmente neste site: http://www.forademim.com.br/site/)

junho 17, 2014

Foto

TODA IDEIA QUE UM HOMEM POSSA TER
  
Eu tomei essa rasteira. É assim que as coisas são. Contudo. Na concórdia e na discórdia. Regras sociais existem, e nem sempre nos contemplam. Temos de rezar pelos que nos humilham. Mas perdoar em excesso também não é lição apropriada. Um imenso céu azul pesa tanto quanto uma montanha inteira esculpida, digamos, com rostos de ditosos presidentes. E isto é o que me desgosta a alma. Toda concepção que um homem possa acalentar, seja para o bem ou para o mal, acomoda-se na mesma sobrenatural balança. Houve que me tornei um peixe na linha de decisões sacramentadas. Lutei uma barbaridade nessa fisgada. É claro que não desisti assim, de uma hora para a outra, da minha invejável posição social. Tudo aconteceu em suaves pedaladas morro abaixo. As ações despencaram. O penhor tomou a casa. O carro foi absorvido no divórcio. Os filhos ficaram com minha ex-esposa. “Fiz uma besteira, mano”, falei para meus recentes colegas de infortúnio. Entretanto, não recebi nenhuma palavra de conforto. Lembro-me que fiquei sentado meio tonto, debaixo de uma ponte, com bêbados e sem-tetos. Nada me preparara para o fracasso. Eu achava que era predestinado. Como se na pedra por esculpir já estivesse escondida, em definitivo, uma estátua. Tentei ser otimista. Mas a cabeça também estala em pensar o contrário.

- Siga seus objetivos... É correto que deva haver algum plano...

Isto dito pelo Samuel. Um velho mendigo que também já teve seus dias de prosperidade quando, assim como eu, desceu as glamorosas escadas sociais até o realístico raso da rua. Mas porque ele mesmo não seguiu seu plano secreto?

- Samuel, se fosse assim, qual seria seu próprio plano? Porque ainda está morando na rua?

- Infelizmente eu nunca tive objetivos claros. Sigo conforme a determinação do destino em dar essa chance... Mas, quem sabe?

Ouvi as premissas de Samuel com certo pesar. E se eu fosse como ele, destituído de planos que sejam favorecidos pela sorte? Todavia, passei a imaginar qual projeto eu teria para colocar em prática. Todo dia tenho essa crença inadiável. Deve haver algum projeto, um único que seja, que me proporcionará uma vida melhor...


(Mini-conto algo inspirado em Toda Idéia Que um Homem Possa ter, poema escrito por Michelangelo Buonarroti)




SE DO CÉU ELA DESCESSE

Ajude-me telefonista. A ligação é para minha noiva Maria que mora em Descalvado, perto do La Roca, perto do Tanquinho, perto da Usina Ipiranga. Oi, motorista, faça esse favor, só esse favorzinho, quando atravessar o córrego do Ramalhete me dê o aviso que eu desço. Todos vínhamos de carona na carroceria daquele caminhão de entrega de leite. O purê de muitas verduras nos atravessava, retinas e saudades, cheiro de mato, perfume de manhã orvalhada. Viemos todos de ray-ban. Os domínios dos donos da terra. Nunca soubemos quem fossem. Todos estavam dançando o twist. Onde uns lábios de pimenta te beijam afoitamente. Todo mundo desligou a TV depois do gol da Argentina. Mas do céu surgiu a ajuda. Vestida de argila, uma santa, uma guia. Ainda penso em você. Sinceramente. Beijos de língua nos empurrando para o sofá. Os domínios da entrada da sala já vencidos. Misericórdia, Maria. Em seguida veio uma segunda-feira triste. Na rodoviária eu vi Maria de longe. Era bem cedo. Tinha de estar na rodoviária para as despedidas. Em seguida você se levantou do banco do ônibus interestadual. Como se vivesse o tempo todo olhando para as coisas de Deus. Veio me abençoar com um beijo no rosto e um abraço. Seu pai de longe nos mirava. Que ele possa enxergar a verdade que é tão clara como o dia. Essa estrela de ir embora tomou Maria sob seus cuidados. Retirei o ray-ban para ganhar um beijo no rosto. Mas falei baixinho para Maria. Se você não beijar minha boca vou dizer o inferno para todos dentro daquele ônibus. Você colocou o dedo nos lábios. Shsss! Pedia-me silêncio. Eu te escrevo, seu bobo, ela disse. Uma carta é sempre uma ninharia. Ingrata essa Maria. Queria poder ir para os Estados Unidos com ela. I´m not too bad, disse para Maria. Esquece isto de infernizar minha vida, ela disse, não sou nenhuma Beatriz para te premiar com o paraíso. Ah, só porque não quero te perder assim, Maria? Gostaria que fosse diferente, mas não posso mudar meu destino, ela respondeu. Só pude lamentar: eu ficaria feliz se estivesse lá com você. Maria não acreditou no que eu dizia. Principalmente quando acrescentei que o amor é a melhor herança que alguém pode ganhar deste mundo. Ela sorria de tudo. Veja se me escreve, tá Maria? Agora corre que o ônibus já vai sair. Tchau, eu disse. Tchau, Maria respondeu.


(Mini-conto algo inspirado em O Desfazer da Beleza, poema escrito por Michelangelo Buonarroti)



Beto Palaio


Arte: Desenho de Michelangelo recentemente descoberto em Florença.

junho 16, 2014


Foto: ATAA OKO - Tentações em torno do esquife - Lápis de cor - 2010

TENTAÇÕES EM TORNO DO ESQUIFE

Há instintos abafados que mesmo assim sobrevivem. No passado o cavalo era a extensão de uma pessoa. Pelo simples fato de que, ninguém, em hipótese alguma, entenderia isso de outra forma. Há motivos para a excitação. Ódio, mesmice, sala vazia, todos os vasos de plantas, em abandono, estão secas. Cheguei de viagem hoje, mas não te encontrei em casa. Eletrizo-me de virar bicho. Ando daqui para ali sem entender. Nunca pedi para ela morar comigo. Dois destinos patéticos que se confirmaram único. Ao longo de meu peregrinar. Essa moça tinha manias na hora do cio. Mas amanheceu. Com isto eu penso que não tenho o mesmo destino vegetal de secar lentamente dentro dessa sala vazia. Era-me. Agora. Fui-te. Nunca tive ninguém fixo até encontrar você. A sensualidade por vezes é-me inoportuna. Podemos tentar fazer o que quiser com ela. Mas somente a sensualidade sabe o que fazer contigo. Há diversos métodos de autofagia. Um puxão que senti quando o pára-quedas abriu. Mas o assunto, por enquanto, nem era este, não ainda. Estava cansado de esperar que o problema se resolvesse sozinho. Chamamos pelo encanador. O sifão da pia estava entupido. Me culpei me confiei me resolvi me alforriei me esquivei me absolvi. Por precariedade adiei o fato desse primeiro compromisso do lixo caseiro haver locupletado irremediavelmente o cano da pia. Este assunto quase põe tudo a perder. Foi por pouco. Deixa eu te colocar a par. O pára-quedas me arrastou de volta para o alto. Estava falando do momento em que saltei para o meio do inferno. Durante a guerra nada fazia sentido. Lutei contra vietcongs que se pareciam fisicamente comigo. Espelho a espelho. Seus últimos suspiros. Suas súplicas ao chamarem pela mãe. Tudo pelo motivo de que. Por falta da posse de suásticas, confirmação do emblema inimigo, nunca se chegou a admitir que talvez mentíssemos. Botões de osso. Pobres botões. Nunca me livrei desses meus espelhos humanos. Quatro pessoas e dois homens que eu eliminei nesta guerra. Os homens se identificaram. Tomaram cerveja com o pelotão em Saigon. Uma vez colocaram uma moeda no fliperama. O som de sininhos repenicado constantemente. Cometi o mesmo erro. Depois de certo tempo cada um é responsável pelo seu próprio sovaco esquerdo e adjacências. Falo do coração. Nada faz sentido se não detalhamos o que temos para oferta imediata aos gritos de não fui eu, não fiz nada, sou apenas um soldado, sou igual a você, veja—então a primeira pessoa a ser morta abriu o uniforme para mostrar onde ficava seu coração—todos naquele pequeno comando terrestre confundimos tudo. O poeta vietnamita apenas quis mostrar o coração em que guardava todo seu sentimento. Até o final do dia matamos três poetas. Mas um deles não foi considerado como pessoa. Esse arrenegado. Até o remate do mal. Comprou uma briga no bar onde ouvíamos Let It Be. Deixa estar. Quando tudo estiver perdido. Deixa estar. Quando todos fecharem a boca. Deixa estar. Quando dedicarem para você o noticiário das sete. Deixa estar. Sim, sim, sim. No passe livre de sábado à noite para quem era dono da munição. Dia de folga. Fomos passar a noite no bordel. Segue-se que o bicho é mais criatura que o homem. Fique de boca fechada. Quando todos querem que você fique de boca fechada, então fique de boca fechada. Ouvimos a discoteca inteira sem emitir uma só palavra. Uma das putinhas mordeu o mastruço de um dos recrutas. Dedicamos aos que seguem as regras o que se seguiu. Um grito alcançou a manhã de 11 de setembro de 1970. Trinta anos antes da revolta dos renegados árabes, os que detonaram as torres. Deixe-me esclarecer alguns fatos. Uma figa, uma osga que estava tudo indo bem. Solitários são os gritos de quem morre numa revanche amigável. Mas isto aqui são somente letras para um livro que jamais será editado. Lendas. Guinchos de ferro com ferro. Que bela assassina tu és, vida! Caos de novo. Uma pequena catástrofe é a morte de cada um. Um fundo de mar revolto, o convite é irrecusável. No mole do inatingível. Eis os pés que se debatem, depois, água até o pescoço, a seguir não alcançamos mais a areia, então flutuamos numa correnteza mais forte, sem chance de retorno, o puxão é forte, como quando estamos num pára-quedas, mas agora o puxão te joga para águas profundas. Nesta ocasião. Você consegue. Você consegue dizer que está tudo bem. Você consegue dizer que está tudo bem quando tudo. Você consegue dizer que está tudo bem quando tudo está desmoronando. Você consegue dizer que está tudo bem quando tudo está desmoronando só para acalmar as pessoas?


Beto Palaio


Imagem: Desenho de Ataa Oko

junho 15, 2014


ARTEDEITADAFICADEPÉ E OS NEANDERTAIS

Era uma vez um começo de estória. A vidinha pré-histórica parecia um longo feriado nacional. Gentes e mais gentes preocupadas em perseguir bisões e mamutes com pedras nas mãos. Artedeitadaficadepé acordou no sono neandertal. “Ô, ô, ê, ê... Amanhã ensino o beabá para esses matutos”. Ela sempre dizia isto, mas nunca que ensinava nada. Acontece que lá nessas lonjuras nasceu um dia artesanalmente lindo. Foi quando o sol pintou-se numa medalha brilhante de deslumbrar. “Ô, ô, ê, ê”, disse a Artedeitadaficadepé, a qual tinha um amor danado pelas coisas que deslumbrassem. Esse apego não a impedia de ser plasticamente ineficiente. Planejava, planejava. Implicava de medir e calcular o que ainda não tinha feito: “só tem calhau de pedregulho por aqui. Logo logo eu arteatearei fogo de artedesoxirribonucleica na cabeça dura desses fulanos cabeludos... Mas não agora... Tem tempo, tem tempo”. Isto disse Artedeitadaficadepé. E lá se passaram cinqüenta mil anos sem muito lufa-lufa, onde a professorinha preguiçosa só intentou de apressar a criação da roda como o primeiro objeto artístico útil, em moldes de ser multiplicado ao comum. “Será um móbile sem dono...”, disse Artedeitadaficadepé, “...a roda será um múltiplo comum utilizável como uma praga por toda a eternidade humana”. Artedeitadaficadepé queria se mudar para dentro de outras mudanças. O mundo era seu lugar, mas o seu aluno neandertal estava ainda muito mocorongo e despreparado. “Umas titicas de coisa nanica que logo que eu der um pouco de artesopinha para eles já pensarão que são os donos de mim”. Vinha refletir nisto com uma prorrogação danada de suas obrigações de professora de arteprimáriaprimaveril. Até planejava ficar para sempre nesses descampados providos de cavernas onde os neandertais se recolhiam em dias de nevascas. Isto era onde ela se deleitava, mas aconteceu do deus D de Design, o senhor de tudo, ter outros planos para Artedeitadaficadepé.

- Vamos dar uma avançada nesses neandertais para animar Artedeitadaficadepé...

D de Design consolou os desterrados. Logo ensinou festa de cantoria em volta da fogueira, no estilo quermesse com churrasco de mamute, isto um bom tempo antes do bicho-homem ser dotado de roda. Depois D de Design inventou a fala para que eles contassem suas estórias quando se reunissem para dormir dentro das cavernas. Depois desbarrancou pedras coloridas que os neandertais acharam bonito de urinar em cima delas, mas não sabiam ainda o que fazer com aquele grude. Então D de Design acordou Artedeitadaficadepé que tanto se assustou com a própria inércia, com o que bocejou a invenção da roda, mas depois quis dormir mais cinqüenta mil anos. Foi o deus D de Design quem agitou a pasmaceira de Artedeitadaficadepé sobre a terra colorida urinada:

- Agora é com você, Artedeitadaficadepé, agora é com você!

“A arte é viúva do instante que a gesta, o qual se extingue em seguida”. Coisas desse naipe estava filosofando Artedeitadaficadepé quando D de Design lhe revelou o progresso alcançado pelos neandertais em produzir massa de urina com terras coloridas. Então Artedeitadaficadepé tomou coragem e, enfim, levou-os a pensar em forma e conteúdo. A segunda lição foi mostrar a beleza contida nos matizes e cores daquela terra urinada. A seguir, por fim, revelou como espalhar o grude nas paredes de pedra das cavernas. Foi assim que ela ensinou pintura para os neandertais. 

- Ô, ô, ê, ê...

Depois disto Artedeitadaficadepé foi jogar xadrez com D de Design, assim como o artista Marcel Duchamp jogaria xadrez com sua modelo nua, milhares de anos depois. Ali, entre um lance e outro, eles filosofavam:

- A arte estará sempre no primário da latência... Disse D de Design.

- A arte é um pouco maniqueísta, pois só admite vastidões no bem e no mal... Admitiu Artedeitadaficadepé.

- A arte do aqui agora toca flauta numa festa de rouxinóis do passado... Afirmou D de Design enquanto propunha uma troca de rainhas no jogo de xadrez.

- A arte estará sempre à beira de um cheque-mate... Disse D de Design desferindo um cheque-mate em Artedeitadaficadepé. 

- A arte é apenas uma troca sem limites... Disse Artedeitadaficadepé, ao aceitar a troca das rainhas.

- A arte estará sempre à beira de um cheque-mate... Disse D de Design desferindo um cheque-mate em Artedeitadaficadepé.

Assim sendo, para o que viesse a seguir nesta série de ensinar arte aos humanos, a Artedeitadaficadepé se transformaria em Artetãtãdetambor, mas isto já é outra estória...


Beto Palaio


Foto: arte neandertal de quase 100 mil anos.

junho 14, 2014



QUATRO CONTOS PARA EDITH E EGON SCHIELE 

Ventava muito naquela manhã. Minha coluna vertebral estava enregelada. Parecia que ela se transformaria num arrimo de geadas. Foi quando olhei de lado e parei para apreciar uma parede. Havia ali um mundo entalhado a canivetes. Arranhados por sobre uma caiação antiga. Todo um universo humano com seus vales, montanhas e lagos. O vento cortante me afligia. Sentia-me um suicida que permanecia a disposição daquela foice mortal, mas não arredava o pé daquele mirar. Ali o artista—sabe-se lá quem seja—desenhou, com estocadas de corte diminuto, animais que corriam açoitados por cavaleiros apressados, os seus perseguidores. Mas isto era apenas um detalhe no todo, pois aquém se revelava sombras de árvores frutíferas com a presença, aqui e ali, de alegres manchas solares. Eu, entretanto, caminhava por sobre a terra, e não sentia mais as minhas pernas e braços, contudo me quedava prazerosamente leve. Ausentando-me dali como se flutuasse sobre uma pluma.

(Mini-conto escrito a partir de um pequeno poema de Egon Schiele)



Onde estive assim distante de minha adorada? Vi ao longe caminhos atravessados. Todos esses caminhos se dirigiam para uma distante montanha, agora afogada na neblina. Chovia um negrume de noite cerrada. Houve mesmo esse rio de águas negras, um fragor de cachoeiras, tinta negra que inclusive tentou sugar minhas forças. Tudo conspirava contra mim. Mas nenhum manto de pó de carvão me alcançou. De fato vi que havia nesta planície, em meio ao limbo, águas menores a correrem. Eram águas límpidas de riachos ocasionais. Barrancos de lama flácida, porém esperançosas. Ali eu lutei, desencontrado. Então fui recolhido pelos braços de um anjo, tanto quanto pelos dentes fiéis de seu cão de estimação. Logo, já refeito, eu respirei do ouro de viver. Acordei e, de fato, chovia no nosso quintal. Você me consolava com seu corpo nu. Mordiscava-me ternamente, tal uma ninfa angelical que eventualmente se revela em seus beijos repletos de luxuria. Não quis acordar. Não, não. Agora não.

(Mini-conto escrito a partir de um pequeno poema de Egon Schiele)

                                                                                        

Seus cabelos castanhos, feiticeiros como o melhor dos champanhes. Uma tradução do que são seus cabelos: o marrom quente da terra de Úmbria. O vermelho ardente das folhas outonais que se entregam ao rapto do vento sob um céu azul. Um carmim luxuriante como a inteira composição ferroviária que liga Berlim ao oceano. Por fim, é claro, as cores lascivas de seus contornos lúdicos, onde me aprofundo com meu membro pulsante em seu púbis que, alucinante, imita a cor das gôndolas venezianas. Em você me deleito por inteiro. Anseio pelo prazer grego de existir a dormitar em uma rede de cetins, acalentado pelo melhor vinho já servido a um mortal. É como um homem faminto que me arremesso para dentro de você. Ao sabor de nuvens que correm para se esconderem no oeste, repletas de luz e cores. Você é com certeza uma mulher-noite, então me lanço às suas eternidades de nuances. Sem esquivas. Sem palavras. Apenas me dissolvo em meio à sua fragrância de carne feminina. Abraço-te com loucura. Pois estou caindo. Totalmente entregue ao seu infinito perfumado. Ditoso ao adentrar sua rosa cálida. Onde gozo em plenitude, para depois desfalecer nesta delícia que é te amar.   

(Mini-conto algo inspirado na pintura Amantes Abraçados de Egon Schiele)

                                
                                                                                       
Eu sempre me lembrarei que era princípio de noite. Havia pessoas esperando por algo vindo do céu. Aquilo durou uma eternidade, mas terminou muito cedo: o tempo das pessoas entenderem que um cometa não é nenhuma colher insana que vem agitar um céu feito de geléia. Eu segurava sua mão. Você parecia estar sozinha a meu lado. Olhava para o céu azul escuro. Mas nada acontecia ali. Parecia mesmo que via um fenômeno comparável à lua vindo se derreter contra o sol. Mistérios que somente seus olhos decifravam. Viajando por mundos de revelações nunca alcançadas por outro olhar qualquer, senão pelo seu próprio olhar. Por um momento eu te vi chorar. Era fim de setembro e fazia frio. A maravilha que seu olhar vislumbrou ao mirar aquela imensa tela de cinzas azulados, isto eu jamais saberei. Mas a miríade de duas pequenas lágrimas suas, isto sim é que mexeu comigo. A humanidade parou para observar o cometa. Pura perda de tempo e de pesquisas adiadas ou perdidas. Quanto valeria para os pobres mortais um momento só do que foi seu vislumbre? Para você o cometa possivelmente apareceu mostrando como estavas no dia do casamento. Um rosto iluminado pelas flamas da felicidade, deixando também que submergisses numa cauda luminosa. Pois foi ali, no piso da igreja, que sua Via Láctea se arrojou em brancuras, no dia de nossas núpcias.

(Mini-conto algo inspirado no desenho Edith Apoiada no Joelho, de Egon Schiele)



Beto Palaio


Arte: Egon Schiele - O casal - 1913