junho 22, 2014


QUASE NOITE

Quase noite: hora em que os morcegos se disfarçam de pássaros. Eu sinto muito. Estou aqui bestificado. Porque não pensei nisto antes? Erros, dizem vocês, erros fazem parte do aprendizado juvenil. E eu os cometi aos montes. Tanto que. Há coro e velas acesas nas igrejas, mas não me convencem. Decoração natalina nas ruas, mas nunca dizem nada para mim. Num disco 78 rpm, os Meninos Cantores de Viena me parecem bregas demais. O que fiz para ganhar reputação de incorrigível? Apenas caminhei pelo mundo. Ora sendo de sobra, ora sendo de saldo. Apenas amei demais. Amei uma mulher de cabelos rubros como folhas de outono. Sua voz me tentava sensualmente, no quase escuro, como se fosse me pecar no crepúsculo. Por vezes ela se vestia de azuis profundos. Por vezes de cinzas terreais. Falou-me ela muitas vezes sobre as infinitas constelações, onde incluía a matemática grega que cedia catetos à hipotenusa. Amei loucamente essa mulher. Seus lábios brilhavam como brasas desfalecidas. Em seus lábios definitivamente me perdi. Quase noite: cambiante é este minuto onde há tempo para decisões e revisões que o próximo minuto revoga.

Quase noite: quando os grilos começam a ficar carentes e chorões. Um recorte angelical no que se conta com tanto empenho e fé. São gritos ao calvário. Que será isto? São ais de contornos infrutíferos. E que dor seria esta? Imensa, gigantesca, incomensurável. Dor em que até a Virgem padeceu. Foi quando os seus braços sentiram esse vazio. Pelo desaparecimento de seu filho amado no calvário. Que se aclare o que está desperto. Luz costurada e bordada por dentro e por fora. É porque estamos vivendo essa fé imensa. Aonde até os anjos vêm cantar. Os recortes. De papelão. Prédios inteiros constritos dessa forma. Eles se perdem no alinhavado do lusco-fusco. Caminhamos todos ao longo deste chão batido. Todas as folhas caídas se assemelham a uma língua tingida de cascas de laranjas marrom-avermelhadas. No ar fresco não há dor. Aqui Cristo não morreu. Um pássaro gorjeia como lembrete à sua mãe. Todos os seus amigos voaram para se esconder do Inverno. Mas esse pequeno pássaro tem aqui uma missão. Ele faz o melhor que pode. Ainda mais agora que o sol está brilhando lindamente por detrás das últimas árvores na linha do horizonte. Quase noite: talvez o mar  tente até tirar um cochilo nesta noite.

Quase noite: meninos jogam futebol até não enxergarem mais a bola. Uma certeza me espia de soslaio. Minha viagem começa aqui. Meu futuro é o caminho do que foi dito e feito. Como a estrada que ficou para trás. A rua da infância. O prédio demolido da primeira escola. A casa de meus pais. O tempo é um mercado deveras apinhado de acontecimentos. O vinho envelhece no porão, meu amor foi para a guerra, o mapa da juventude está irremediavelmente perdido. Entretanto há um alento. Sigamos então, eu e tu, destino meu. Quando a noite se acomoda lá fora no edredom do céu. Como uma criança que adormece no banco detrás de um carro. Passamos momentos de doce entretenimento. Vamos, o bebê-noite e eu, passear pelas ruas já quase desertas. A promessa da noite já faz acender os luminosos dos motéis baratos. Correm nos trilhos os trabalhadores educadamente treinados a voltarem para casa. Os restaurantes oferecem peixes pescados na hora. Todo argumento agora parece ser tedioso. Porque então não nos perguntamos: o que somos, de onde viemos, para onde vamos? Cansaram-se desta premissa secular? Crianças são sempre crianças. Os meninos jogam bola e falam de Michelangelo. As mulheres apressadas falam de Michelangelo. O motorista do ônibus que espalha sua fumaça negra fala de Michelangelo. Sentado aqui no telhado. Eu assisto o pôr do sol sobre a cidade. Uma única bola vermelha de fogo se vale para tudo tingir de matizes infindos. A coloração empresta aos carneiros de nuvens um tom de rosa brilhante. Esses carneirinhos não são nada dóceis. Eles se juntam uns aos outros socialisticamente e tornam-se arautos da próxima tempestade. Mas não agora que fios indizíveis de tons gritam por Michelangelo. Agora é quase noite. E é quando a primeira estrela surge para cintilar suas eternidades no âmbar.


Beto Palaio



Arte: PATTY BAKER - O sol se escondendo em Utah - 2012

Nenhum comentário: