junho 09, 2014


ALGUÉM CANTOU ALELUIAS NO CORREDOR
         
Um grito atravessou o céu. Parecia ser isto, mas não foi. Alguém batia na porta do quarto. Quem está aí fora? Perguntou ele, com a respiração recortada. Ainda sonolento. Abrindo lentamente seus braços preguiçosos, vinha despertar ao límpido do momento, em verdes folhagens. Nesta vida em que se concorre. Barroquismo de coqueiros e palmeiras imperiais. Uma aberração apenas invadida pelo ocasional desadormecer. Ao magnetismo de acordar assustado. Uma vampira poderia estar batendo naquela porta. Um grito foi o que ele ouviu. Dependuradas na porta, pelo lado de dentro, as chaves balançavam. Uma radiação qualquer pedia para tomar forma ali no corredor. No lado de fora uma motosserra entrou a ranger seus dentes revolucionários. Sua cama não era mais um refúgio seguro. Lá fora a vida ardia dentro de uma caixa de chocolates. Apenas que seu corredor tinha 18 anos de idade, agitava bandeiras ativistas, enquanto ele mesmo tinha 62 anos de idade, e mantinha promessas de não envolvimento. Alô, ó de casa. Alguém aí dentro? Ele não responde nada. Fica de soslaio. Quer porque quer adivinhar quem bate. Embora pleno de certezas. Aquilo em que todos nós titubeamos. Quando e onde. Todos morremos. Mas nunca na véspera. O fato mais que consagrado. Todos dissipamo-nos um pouco quando adormecemos. Nisso ele pensava. Enquanto desde o console. Um programa de TV comunicava Chacrinha para um bando de adolescentes gritalhões. Havia ali um impasse. O corredor o invadia ao ponto dele conhecê-lo por inteiro, desde as imperfeições dos tacos de madeira, até a parede mal pintada. No entanto sua mente quedava-se popularmente brega e incapaz de adivinhar quem batia na porta de seu dormitório. O apresentador na TV parecia lacrimejar por detrás de óculos grossos de miopia. Uma dançarina veio desde Belém do Pará e forçou sua coluna para ganhar o premio da maior contorcionista do Brasil. O velho apresentador pediu palmas. O mundo civilizado acompanhou aquele belo corpo juvenil se curvar para trás e se tornar um disforme pedaço de borracha que uniu sua cabeça aos tornozelos. Todos gritavam na TV. Entretanto. Alguém batia na porta de seu quarto. Sua nominação como chefe de seção nos Correios acabara de ser editada no Diário Oficial. Uma janela entreaberta demonstrava que a rua estava vazia. Uma lata de marmelada, a guisa de cinzeiro, estava no parapeito da janela, cheia de pontas de cigarros. Meus cigarros se acabaram. Vou acender as bitucas maiores do meu cinzeiro. Uma a uma as pontas de cigarro se entregavam. Alguém retirou o sapato na porta de entrada e andava usando somente as meias do lado de fora. Quem estaria em seu corredor? Uma chance em um milhão que ele adivinharia quem batia à sua porta. É você, filho? É você, filha? É você, Maria da Graça? É você? É você? Ninguém respondia. Uma luz verde ardia no corredor quando ele olhou pelo buraco da fechadura. As suas mãos tremiam. Todas as pontas de cigarro haviam sido fumadas até o filtro. Uma maneira ridícula de ser morto. Em seu cativeiro, revia toda sua história. Senhoras e senhores, eu vivi tão pouco! Quis gritar por socorro. Abriu totalmente a janela. Viu-se prontamente em apuros. Observou longamente o lado de fora. O chão estava longe. A luz do poste chegava até sua janela. Mas em competição com a luz da lua, a fraca iluminação pública ficava humilhada. Ele quis gritar por socorro. A rua estava realmente vazia. Dali ele podia ver o semáforo que ficava a alguns quarteirões, rua abaixo. O vermelho cedia sua vez para o amarelo que cedia sua vez para o verde que cedia sua vez para o amarelo que cedia sua vez para o vermelho. Ninguém estava dirigindo carros naquela madrugada. Apenas uma mariposa girava em torno da luz amarelada do poste. Uma competição desigual para ver se ela ganhava a corrida contra si mesma. Havia agora um soldado pedindo para ele abrir a porta. Em voz autoritária se identificou como sargento. Disse que era da Policia Militar. Mas o policial tinha a mesma voz de um vizinho que morrera afogado na Urca há muitos anos atrás. O homem isolado no quarto chegou até a porta. Sargento, ô sargento, como vai a Neuzinha? Lembra quando ela dançava no Cassino da Urca? Valeu a pena ter se suicidado pela Neuzinha, Sargento? Um momento de silêncio. A voz do sargento lá fora praguejou. Merda! Como é que você descobriu que era eu. Agora abra a porta. Já sabe quem sou eu, confie em mim. Abra a porta. Mas a porta continuou fechada. Não dava para acreditar num suicida que jamais pertencera ao quadro da Policia Militar. Mas ele ainda fingia que desconhecia a trama, fosse ela qual fosse. Sargento! Com o rosto encostado na porta ele gritou, eu nunca fiz sexo com sua mulher Neuzinha. Não tenho nada a ver com isso. Deixe-me em paz! Dali ele podia ouvir a mariposa se debater contra a lâmpada de mercúrio da rua. Agora alguém mais batia na porta. Dizia ser uma enfermeira, teimava em afirmar que estava tudo bem. Está tudo bem, sim, você pode abrir a porta, só quero medir sua pressão, ver se está com febre. Ouvindo isto ele voltou no tempo. Agora sim é que ele se assustou de verdade. A voz da enfermeira o fez ficar arrepiado dos pés à cabeça. Pois era Neuzinha, ele poderia jurar, sim, era a Neuzinha. Uma mulher promíscua com quem ele se envolveu há quarenta e cinco anos atrás. Neuzinha? Ele perguntou para a enfermeira que tentava abrir sua porta. Neuzinha, é você? Não houve resposta. Uma hora inteira se passou. O corredor estava silencioso. Logo o sossego acabou. Um menino jogava bola no corredor. Sua mãe gritava com ele. Guarde essa bola, pelo amor de Deus! O emparedado reconheceu a voz de sua mãe, e sabia que era ele mesmo quem estava chutando bola no corredor. Logo é aquele menino, aliás, ele mesmo, quem bate à porta. Pode abrir, medroso, pode abrir, pois esta é  sua última chance. Ou você quer que a própria morte venha com seu molho de chaves e abra essa porta? O prisioneiro do quarto finalmente se rendeu. Girou a chave ao contrário, uma, duas vezes. Depois abriu a porta. Lá fora havia somente o silêncio. O silêncio. O silêncio. O silêncio...


Beto Palaio

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