junho 28, 2014



FRÄULEIN

Quanto rodopio num sonho de valsa! Lembram-se? Quando em toda sala de visitas que se preze havia um quadro afogado nas sombras esfumaçadas, cópia que fosse, de um Rembrandt? Aos saraus que se praticam nas melhores casas de família. Fuzarca de sala e saleta. E a nossa distraída Fräulein? Não acho que chegaria impune à perversa solidão. Assim tem sido. Desde que empurrou o guizo-da-sorte para o beleléu, sendo o seu abismo um treme-treme da Rua Aurora. De lá para cá, por tudo que a carne peca, Fräulein nunca mais se emendou. Até que essa errante Fräulein levou um ex-sargento do Exército, o Ramiro Manjericão, vulgo Manjar, até seu ninho de amor...

- Manjar, aguarde na sala-de-espera, eu vou receber alguém, é rapidinho e volto logo... É sério... Por você eu faço tudo em alta velocidade... Não fique com essa cara triste...  Conheço esse visitante assíduo dessa hora da tarde... É um pândego, um moleque que pensa que transando comigo está transando com a mãe dele... Pode isso?... Mas... Se quiser fique no patamar da porta que deixarei só encostada...

- Veja se me escuta, Fräulein... Você é moça ainda... Mas putaria não dura para sempre... Até quando essa vida, Fräulein?

- Ah, Manjar... O que me intriga no meu corpo é que ele sempre acredita em mim... Dou, dou e ele nunca que acaba... Agora não atrapalha e vem ver se quiser...

Como um bocó sem destino, fazia pouco tempo que Rodrigo Manjericão passara a morar com ela naquele antro vicioso e ao mesmo tempo aristocrático, com café da manhã requintado, salsichinhas de Frankfurt, champanhes de Arrebol, vinhos nobres envelhecendo no porão, e compota de frutas nobres de Parati na geladeira. Na portaria do local um estafeta vinha resumindo sua vigilância na quase garoa paulistana.

- Quem quer entrar só para ver não paga nada... Mas também não entra!

Isto dito pelo porteiro para os passantes da Rua Aurora. Foi assim que Manjericão entrou e acabou por conhecer a mulher de sua vida. Logo no primeiro dia, Manjericão apresentou-se à Fräulein sendo atropelado pelos vaga-lumes de suas lantejoulas. Gamou e foi retribuído nesse sentimento tão inconstante que é o amor à primeira vista.

- Volte amanhã, Manjar... Gostou do apelido?... É para eu te saborear melhor, Manjericão... Então, vem manhã?... Desta vez eu não te cobro nada...

Manjericão pouco se importava se Fräulein cintilasse na cama acetinada com mais alguém. Agora surgiu o caso desse jovem que amava a mãe e descontava na Fräulein... Este garotão que estava com ela, nos cafôfos, era como se fosse seu menino manhoso, sobrevivia a respirar Fräulein através de seus poros, como se trespassasse a espada de carne em sua própria progenitora. Manjar não fez caso do garoto carente. Era faturamento da Fräulein. Entretanto ele ficou curioso com que ouvia a respeito do garoto. Naquele dia em que Fräulein o convidou a assistir, ele ficou de espreita no batente da porta, pois Fräulein já estava, com esse meninão, em plena dança das carnes flamejantes. Gemia e gemia a Fräulein. E da porta do quarto o Manjar era apenas um boquiaberto, pouco acreditando no que via e ouvia. Assim, logo depois, surgiu um murmurejo choroso, como de um gato no cio:

- Vem menino, vem... Já vai rezar seus segredos, menino?

Fräulein sussurrou, mas olhava de soslaio para o Manjar, pois sabia ser observada, ainda com o jovem por sobre ela, indo e vindo. Manjar ficou mais curioso ainda. Foi quando ouviu algo brotando daquele suave murmúrio. Ao compasso da foda. Um pouco se confundindo com o acalanto dos gemidos da Fräulein, o amantezinho dela recitava:

- Estou indo, mamãezinha... Estou indo, mãe!...

Tempos depois... Já amancebado com Fräulein... Surge uma efeméride especial que prolongaria seu esconderijo com ela. Deste modo Manjar quedou permanentemente em coaxo, a flutuar no macio de seus cetins e rendas. Mas, fingindo-se de contrariado, ele ainda quer ter certeza de que não fez nenhuma besteira com o que decidiu:

- Você não gostou da aliança de casamento, amor?

Ela que havia sido uma doidivanas, não muito tempo atrás, no pretérito imperfeito, fazia que sim com a cabeça, ou apenas bocejava um tímido hã-hã. Entretanto, sabe-se que, um bom grelo modifica a felicidade de um homem. Apesar disto, na sequência, o Manjar ruminou um arrependimento mofino. No que pensou bem na responsabilidade de ficar com a Fräulein somente para a manutenção de seu orgulho e egoísmo:

- Fräulein... Você não está com saudade da zona?

- Quer saber?... Mesmo?... Ah, Manjar querido... Estou sim... Com muita saudade da zona...

- E se eu pedir para você voltar para a putaria... Mas sem deixar de me prestigiar...

- Manjar, você está querendo se tornar o meu cafetão?

- Não é nada disso...

- O que você quer então?

- Quero ver você feliz, Fräulein...

- Então eu volto para a zona...


Beto Palaio


Arte: Desenho de Carlos Zéfiro.

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