CURTINDO A AVENIDA
ELÉTRICA
A ponta de cigarro girou girou e foi parar no
meio-fio. Eis uma avenida que se esmera em atrair e ocultar estórias. As
façanhas de cada um dos moradores aqui se sabe e compartilha. Sem perda de
tempo e para nunca chover no molhado. Nas páginas de um fanzine a Meméia
iniciou um cinematográfico e raro parto de sereia para o Arquivo X. Alguém
passou com a cabeça escondida num guarda-chuva furta-cor. A menina do 211
sonhava que o garoto do outro lado da rua seria dela de qualquer maneira.
Marmelão, o engraxate, sentado na sua caixa de serviços, lia nos livrinhos do
Carlos Zéfiro as várias formas do coito, além dos oito tipos diferentes de
dentadas amorosas, finalizando com as dezesseis formas de se beijar uma
donzela. Nesta Avenida Elétrica por onde passou Caruso cantando suas árias,
Pavlova à dançar, Giorgio de Quirico com uma tela embaixo do braço, o kaiser
Wilhelm, ainda sonhando em se livrar do nazismo e Thomas Mann, tratando de
colocar seu personagem afeminado em Veneza, bem longe de Frankfurt para que ele
não morresse de tifo em terras alemãs. Na avenida elétrica tudo se sabe e tudo acontece.
Até o sonho plástico da moda: Melissinha com plástico perfumado para os
pezinhos das meninas em flor. Bondes que por ali passaram foram devidamente
abduzidos por um disco voador, agora estão em rumo incerto, ao distante ano de
2222. Parada de Lucas. Flamengo. Anunciação de Maria. O filho do José
Carpinteiro, por nome Jesus, tomou um cargueiro do Lloyd para ir lavando o
porão até Moçambique. Enquanto no Hotel Tóquio a arte ancestral do strip-tease
poderia ser contratada com um simples telefonema para a portaria. Na cidade da
Avenida Elétrica. Um si-si-si de cigarras, um cri-cri-cri de grilos, um
ai-ai-ai da jovem viúva a procura de um outro alguém. O sol do verão estoura
pipocas no meio da rua. Um varredor por nome Waldemar achou um bilhete de
loteria premiado e o devolveu ao legitimo dono, enquanto um perfume de
dama-da-noite invade as tardezinhas mornas, repletas de jovens sonhadores.
- Vejam, é a menina do Sr. Devorak.
Mary Devorak caminha na praça em frente com
seu namoradinho. Na verdade uma comitiva de namoro, pois o casal é seguido de
perto por duas primas, enviadas pelo Sr. Devorak com estritas regras de que
“namorar sim”, ele permitia, “mas somente de longe”.
- Vejam só... Ela já está namorando!... Como o
tempo passa rápido por aqui!
Isto comentado por Sevilha, o barbeiro, que é
tido como o fofoqueiro mais abelhudo da cidade. Enquanto isso, na penumbra das
matinês. Dentro do cine Ouro o jovem casal de namorados e as primas Devorak
assistiram Corra, Lola Corra. Depois Help!, com os Beatles. Depois
Delicatessen. Depois A Primeira Noite de um Homem. Depois Mulheres à Beira de
um Ataque de Nervos. Depois Oito e Meio. Depois Amor à Flor da Pele. Depois
Cidade de Deus. Após algumas sessões Mary Devorak já era grandinha e já podia
ir sozinha ao cinema com o namorado. Eis que os filmes do cine Ouro da Avenida
Elétrica têm duas mãos. Uma vai para o distante futuro enquanto a outra
desaparece nas neblinas do passado. As noticias do mundo chegam à esquina pela
banca de revistas. As vozes mais marcantes do Rap nacional. A Realidade com o
Pelé sorrindo na capa. O Cruzeiro cuidando de promover a Miss Caxias do Sul. Um
Camelot na épica conceitual do ridículo institucionalizado. Suzane Von Richthofen,
que foi condenada a trinta e nove anos pelo assassinato dos pais, aparecia como
uma possível modelo para a Play-Boy. O jornal O Sol insistia em destratar
autoridades militares, agora festivamente constituídas em Brasilia. Naquele
tempo o anti-cristo sequer existia. Somente fatos que passavam do sóbrio ao
burlesco. Sem lenço nem documento. Quatro cabeludos lançam essa moda estranha
que Sevilha, o barbeiro, abomina. A Igreja Universal do Reino de Deus abriu
mais uma filial na avenida. No Bazar da senhorita estranha vendia-se a
felicidade por metro: gabardines, popelines, flanelas e matelassês. A senhorita
estranha ainda tentava puxar a sardinha para o lado dela:
- Mary, esse crepe de seda ficará lindo no seu
vestido de noiva... Mas veja bem, homem não presta... São todos cafajestes...
Você não pode ensinar nada a um homem, você pode apenas ajudá-lo a encontrar a
resposta dentro dele mesmo... Isso dizia minha avó que até hoje não encontrou
resposta nenhuma dentro de meu avô... Só quero te abrir os olhos... Casamento é
coisa séria... Bom, se você quiser insistir, eu lavo as mãos... Olhe,
belezinha, se você acredita em Papai Noel, vá em frente... Mas depois não venha
chorar aqui na porta do meu Bazar...
Então, o tempo e o vento sopraram nas
querências. Ana Terra disse para não nos preocuparmos com a ordem cronológica.
Logo, tal vôo de colibri, tratamos de ir fazendo o nosso tão essencial balanço.
Tal Fausto de Goethe. Um vídeo-clip mostrava o Michael Jackson vestido de
andrajos, seguido de perto por lobisomens, boitatás e mulas-sem-cabeça. Bem
longe do pé de laranja lima que conversava com as crianças no fundo do quintal,
Marina Lima quis voltar a colar os caquinhos de uma virgindade inapelavelmente
perdida. Nisso o vídeo-clip poderia ter sido claro, principalmente nesta
questão do selinho protegido pela castidade: “saibam, meninos e meninas, que o
amor e o desejo dão asas ao espírito para as grandes façanhas”.
- Senhor pastor... Antes que essa moda pegue
nas igrejas evangélicas... Seria bom mandarmos a policia na reunião do Santo
Daime. Eles estão tomando o tal chazinho alucinógeno lá na casa do Seu Arthur
do Rosário, aquele promíscuo...
Parada de sucessos no Pickup do Pica-pau. Como
nem tudo são flores, fomos perguntar ao Patrick, primo do Miguelzinho, irmão do
Paschoal, que esteve na França em 1972, mas, evidentemente nunca como turista.
Perguntamos à esse bem informado Patrick se valerá mesmo a pena lutar pelo
Brasil, pois o Brasil já seria naturalmente uma Terra de Ninguém. Isso nunca
foi novidade nem para as perdidas mulheres de Atenas. O canto de Ossãnha. Num
tratado de Tordesilhas. Tecidos moles sempre têm um caimento macio. Enfim, a
Mary Devorak resolveu que se casaria sim. Num tafetá cintilante de cor pérola.
Um sapatinho quase em tom rosa para dar um toque diferente. Luvas, sim, bem
marginais, quase brancas, para combinar com a pele clara da noiva. O séqüito
seguiu pela Avenida Elétrica. O buquê foi jogado para trás, diretamente para
uma das primas solteironas de Mary Devorak. Contudo o Sr. Sevilha nem promoveu
o casório, pois a barbearia fechou no inicio dos anos oitenta. Na Avenida
Elétrica, desde o tempo de Dancing Days, o lance é mesmo tratar de ser feliz. E
tome polca!
Beto Palaio
Ilustração: Sarah Joncas
Um comentário:
Veja bem!!!
Sem palavras... logo, logo, passo a comentar estas maravilhassss... ameiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
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