junho 12, 2014


CURTINDO A AVENIDA ELÉTRICA

A ponta de cigarro girou girou e foi parar no meio-fio. Eis uma avenida que se esmera em atrair e ocultar estórias. As façanhas de cada um dos moradores aqui se sabe e compartilha. Sem perda de tempo e para nunca chover no molhado. Nas páginas de um fanzine a Meméia iniciou um cinematográfico e raro parto de sereia para o Arquivo X. Alguém passou com a cabeça escondida num guarda-chuva furta-cor. A menina do 211 sonhava que o garoto do outro lado da rua seria dela de qualquer maneira. Marmelão, o engraxate, sentado na sua caixa de serviços, lia nos livrinhos do Carlos Zéfiro as várias formas do coito, além dos oito tipos diferentes de dentadas amorosas, finalizando com as dezesseis formas de se beijar uma donzela. Nesta Avenida Elétrica por onde passou Caruso cantando suas árias, Pavlova à dançar, Giorgio de Quirico com uma tela embaixo do braço, o kaiser Wilhelm, ainda sonhando em se livrar do nazismo e Thomas Mann, tratando de colocar seu personagem afeminado em Veneza, bem longe de Frankfurt para que ele não morresse de tifo em terras alemãs. Na avenida elétrica tudo se sabe e tudo acontece. Até o sonho plástico da moda: Melissinha com plástico perfumado para os pezinhos das meninas em flor. Bondes que por ali passaram foram devidamente abduzidos por um disco voador, agora estão em rumo incerto, ao distante ano de 2222. Parada de Lucas. Flamengo. Anunciação de Maria. O filho do José Carpinteiro, por nome Jesus, tomou um cargueiro do Lloyd para ir lavando o porão até Moçambique. Enquanto no Hotel Tóquio a arte ancestral do strip-tease poderia ser contratada com um simples telefonema para a portaria. Na cidade da Avenida Elétrica. Um si-si-si de cigarras, um cri-cri-cri de grilos, um ai-ai-ai da jovem viúva a procura de um outro alguém. O sol do verão estoura pipocas no meio da rua. Um varredor por nome Waldemar achou um bilhete de loteria premiado e o devolveu ao legitimo dono, enquanto um perfume de dama-da-noite invade as tardezinhas mornas, repletas de jovens sonhadores.

- Vejam, é a menina do Sr. Devorak.

Mary Devorak caminha na praça em frente com seu namoradinho. Na verdade uma comitiva de namoro, pois o casal é seguido de perto por duas primas, enviadas pelo Sr. Devorak com estritas regras de que “namorar sim”, ele permitia, “mas somente de longe”.

- Vejam só... Ela já está namorando!... Como o tempo passa rápido por aqui!

Isto comentado por Sevilha, o barbeiro, que é tido como o fofoqueiro mais abelhudo da cidade. Enquanto isso, na penumbra das matinês. Dentro do cine Ouro o jovem casal de namorados e as primas Devorak assistiram Corra, Lola Corra. Depois Help!, com os Beatles. Depois Delicatessen. Depois A Primeira Noite de um Homem. Depois Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Depois Oito e Meio. Depois Amor à Flor da Pele. Depois Cidade de Deus. Após algumas sessões Mary Devorak já era grandinha e já podia ir sozinha ao cinema com o namorado. Eis que os filmes do cine Ouro da Avenida Elétrica têm duas mãos. Uma vai para o distante futuro enquanto a outra desaparece nas neblinas do passado. As noticias do mundo chegam à esquina pela banca de revistas. As vozes mais marcantes do Rap nacional. A Realidade com o Pelé sorrindo na capa. O Cruzeiro cuidando de promover a Miss Caxias do Sul. Um Camelot na épica conceitual do ridículo institucionalizado. Suzane Von Richthofen, que foi condenada a trinta e nove anos pelo assassinato dos pais, aparecia como uma possível modelo para a Play-Boy. O jornal O Sol insistia em destratar autoridades militares, agora festivamente constituídas em Brasilia. Naquele tempo o anti-cristo sequer existia. Somente fatos que passavam do sóbrio ao burlesco. Sem lenço nem documento. Quatro cabeludos lançam essa moda estranha que Sevilha, o barbeiro, abomina. A Igreja Universal do Reino de Deus abriu mais uma filial na avenida. No Bazar da senhorita estranha vendia-se a felicidade por metro: gabardines, popelines, flanelas e matelassês. A senhorita estranha ainda tentava puxar a sardinha para o lado dela:

- Mary, esse crepe de seda ficará lindo no seu vestido de noiva... Mas veja bem, homem não presta... São todos cafajestes... Você não pode ensinar nada a um homem, você pode apenas ajudá-lo a encontrar a resposta dentro dele mesmo... Isso dizia minha avó que até hoje não encontrou resposta nenhuma dentro de meu avô... Só quero te abrir os olhos... Casamento é coisa séria... Bom, se você quiser insistir, eu lavo as mãos... Olhe, belezinha, se você acredita em Papai Noel, vá em frente... Mas depois não venha chorar aqui na porta do meu Bazar...

Então, o tempo e o vento sopraram nas querências. Ana Terra disse para não nos preocuparmos com a ordem cronológica. Logo, tal vôo de colibri, tratamos de ir fazendo o nosso tão essencial balanço. Tal Fausto de Goethe. Um vídeo-clip mostrava o Michael Jackson vestido de andrajos, seguido de perto por lobisomens, boitatás e mulas-sem-cabeça. Bem longe do pé de laranja lima que conversava com as crianças no fundo do quintal, Marina Lima quis voltar a colar os caquinhos de uma virgindade inapelavelmente perdida. Nisso o vídeo-clip poderia ter sido claro, principalmente nesta questão do selinho protegido pela castidade: “saibam, meninos e meninas, que o amor e o desejo dão asas ao espírito para as grandes façanhas”.

- Senhor pastor... Antes que essa moda pegue nas igrejas evangélicas... Seria bom mandarmos a policia na reunião do Santo Daime. Eles estão tomando o tal chazinho alucinógeno lá na casa do Seu Arthur do Rosário, aquele promíscuo...

Parada de sucessos no Pickup do Pica-pau. Como nem tudo são flores, fomos perguntar ao Patrick, primo do Miguelzinho, irmão do Paschoal, que esteve na França em 1972, mas, evidentemente nunca como turista. Perguntamos à esse bem informado Patrick se valerá mesmo a pena lutar pelo Brasil, pois o Brasil já seria naturalmente uma Terra de Ninguém. Isso nunca foi novidade nem para as perdidas mulheres de Atenas. O canto de Ossãnha. Num tratado de Tordesilhas. Tecidos moles sempre têm um caimento macio. Enfim, a Mary Devorak resolveu que se casaria sim. Num tafetá cintilante de cor pérola. Um sapatinho quase em tom rosa para dar um toque diferente. Luvas, sim, bem marginais, quase brancas, para combinar com a pele clara da noiva. O séqüito seguiu pela Avenida Elétrica. O buquê foi jogado para trás, diretamente para uma das primas solteironas de Mary Devorak. Contudo o Sr. Sevilha nem promoveu o casório, pois a barbearia fechou no inicio dos anos oitenta. Na Avenida Elétrica, desde o tempo de Dancing Days, o lance é mesmo tratar de ser feliz. E tome polca!
                                


Beto Palaio


Ilustração: Sarah Joncas

Um comentário:

Solange Damião disse...

Veja bem!!!

Sem palavras... logo, logo, passo a comentar estas maravilhassss... ameiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii